Vinícola

Denise Accurso


O dia estava tremendamente quente. Não sabia que fazia tanto calor assim na Argentina. Nossa excursão estava em Mendoza, tenho quase certeza de que isso é na Argentina… Ou seria no Chile? Mas acho que fazia uns 150 graus. Sério, sem exagero, devia estar perto dos quarenta.
Mesmo assim todos nós estávamos nos divertindo. Meu ex-marido odiava viajar em excursão. “Não sou novilho para andar em rebanho”, ele dizia. Já eu adoro. A gente faz novas amizades, não se preocupa com nada, só curtição.
Éramos uma turma alegre e logo formamos uma panelinha das viúvas-separadas-solteironas. Modéstia à parte, nosso grupo era o mais divertido e todos queriam estar perto de nós. A mais velha, Dona Adelaide, de 85 anos, nos fazia rir até chorar contando histórias do “falecido”. Segundo ela, seu finado marido era uma verdadeira peste, cheio de amantes, sem paciência com os filhos, a personificação do machismo. Nos anos em que viveu com ele, Dona Adelaide poucas vezes pode fazer o que tinha vontade. Com ele morto, filhos criados e uma gorda pensão, Dona Adelaide curtia a vida e viajava quando queria, pra onde queria.
Tenho que admitir que sentia uma certa inveja. Eu não tinha tanta liberdade e minhas finanças não eram assim tão folgadas. Colei na velha senhora, contagiada com seu riso, sua sinceridade.
Nós duas fomos as primeiras a entrar na bodega, como chamam lá as vinícolas. Em seguida nosso grupinho estava formado. Veio um rapaz nos explicar o processo de fabricação dos vinhos. Não prestávamos atenção.
– Meninas, olha que gato esse homem! Ah, meus 50 anos.
– Dona Adelaide, pelo amor de Deus, ele vai ouvir!
– Ué, deixe que ouça! Eu já nem tenho ânimo pra essas coisas, mas ele bem que iria combinar com você!
– A senhora acha que eles não entendem português, mas esses rapazes são acostumados a lidar com turistas e falam vários idiomas. Por favor, fale mais baixo!
As risadas não paravam. Algumas pessoas, interessadas nas explicações, olhavam pra nós de cara feia. Dona Adelaide encarava de volta.
– Que foi? Vai mandar uma velha da minha idade calar a boca?
Não conseguia parar de rir nem de olhar o recepcionista da bodega, que era realmente bonitão. Dona Adelaide percebeu meu interesse.
– Moço! Você aí do vinho! Psiu!
Quando o rapaz olhou:
– Quero te apresentar essa amiga minha, ex-miss Brasil, ex-BBB, ex-modelo… Mas ainda dá pro gasto!
O rapaz parecia confuso.
– Não liga não, ela é muito brincalhona. Não sou nada disso, quem me dera.
– Pero bueno podría ser – disse o rapaz, olhando interessado.
Ah, essa Dona Adelaide! Ela estava frenética:
– Eu disse! Eu disse! Além de bonito, sabe tudo de vinho!!! E por falar nisso… Aqui não tem vinho?
O rapaz, vai para trás do balcão e começa a enfileirar garrafas e garrafas de vinho. Peço que me sirva um Malbec – posso não entender de vinho nem falar espanhol, mas descobri que desse eu gosto.
Várias taças são servidas e consumidas. Dona Adelaide já fez o rapaz anotar o nome e o telefone num dos panfletos da bodega e está ainda mais alegre depois de várias taças de vinho. Nem estou contando mais.
– Vai lá, menina, vai pra trás do balcão ajudar ele! Ela grita e me empurra com força surpreendente para uma bêbada idosa.
Vou.
Ele me pede para ir junto com ele até a “cave” pegar mais vinho. Assim que entramos, me abraça e me beija. Diz coisas incompreensíveis ao meu ouvido. Voltamos.
– Hoje nós vamos ficar em Mendoza! Só vamos embora amanhã. Que horas você larga do serviço?
Os olhinhos de Dona Adelaide estão brilhando, suas mãos enrugadas apertam o braço do rapaz, que ri. É o único sóbrio naquele bando de gente.
– Me voy a las veinte, señora. Y diez minutos después estaré frente a tu hotel, esperando a la bella dama.
Até eu consegui entender. O difícil era fazer Dona Adelaide parar de gritar. Ela correu até mim, apertou minhas bochechas:
– Ela merece! Ela merece!
Até os mal-humorados da excursão estavam rindo. Houve brindes ao “casamento” e parabenizações ao talento de Dona Adelaide para cupido.
– Vou ter passe livre na vinícola!! É o mínimo por juntar esses pombinhos.
Começamos a voltar para o ônibus. Dona Adelaide foi a ultima a entrar, escoltada – e quase coagida – pelo nosso guia. Sua animação não diminuiu.
– Tá certo, vamos logo para o hotel que a nossa cinderela tem que se arrumar. E vê se te depila direitinho, vá que tudo dê certo…
Estouraram gargalhadas por todo o ônibus. Dona Adelaide se aninha no banco ao lado do guia. Minha cabeça gira, fazia anos que não me sentia tão animada.
O ônibus estacionou e todos desceram. Ficamos eu, lá atrás, e Dona Adelaide, bem na frente, ferrada no sono.
Fui até ela.
– Dona Adelaide! Chegamos. Hora de descer.
Segurei seu ombro ossudo e sacudi com força. A cabeça caiu, sem vida.

 

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