Berlim antes e depois do muro

Marta Leiria

CAPÍTULO 3

Bastam quatro horas e meia de trem para perfazer o trajeto Munique-Berlim, mas não bastam, como já sabíamos, os quatro dias e meio que tínhamos disponíveis para conhecer as principais riquezas arquitetônicas, históricas e artísticas de uma das mais jovens capitais europeias - sempre as tais escolhas dentre inúmeras opções.
Ao contrário de aeroportos, de regra em locais afastados, estações de trem possibilitam acessar facilmente a região central das cidades. E a gente vai descansado, estudando sobre os destinos eleitos e admirando as paisagens sem as preocupações inerentes a perfazer o trajeto de carro. Com a diminuta bagagem de mão e a mochila nas costas ficou fácil descer na estação e caminhar até o hotel, situado no centro histórico da capital da Alemanha, nas proximidades da Avenida Under den Linden, das regiões mais atraentes de Berlim. A partir do século XVII foram erguidos prédios elegantes na região e nos séculos seguintes essa avenida tornou-se uma das mais imponentes da cidade. O bombardeio na Segunda Guerra Mundial provocou muitos danos. Apesar da reconstrução apenas parcial pelo governo alemão-oriental, a região ainda tem o maior número de edifícios históricos de Berlim. Após a reunificação da Alemanha, a avenida recebeu inúmeros cafés, restaurantes e lojas elegantes, inclusive as famosas Galeries Lafayette.

No dia seguinte à chegada, o encontro com nossa guia Silvia Brito Morales para desbravar a capital durante dois dias falando nosso bom português, perfazendo quase todos os trajetos a pé. Que aulas! Com formação em história, especializada na 2ª Guerra Mundial, fizemos uma incrível viagem no tempo, iniciando com passeio pelo centro histórico: o bairro judeu, o que restou do Muro, o Portão de Brandemburgo, símbolo por excelência de Berlim. Inspirado na entrada da Acrópole de Atenas, a obra neoclássica foi concluída no final do século XVIII e ostenta uma belíssima “Quadriga”, símbolo da paz. Em 1806, durante a ocupação francesa, foi desmontada por ordem de Napoleão e levada para Paris, retornando em 1814, quando foi declarada um símbolo de vitória e a deusa recebeu o cetro que ostenta a águia prussiana e uma cruz de ferro adornada por uma coroa de louros. Na visita ao Bairro Judeu, onde almoçamos, o que mais me chamou a atenção foi a obra “O bloco das mulheres”, esculpida pela artista Ingeborg Hunzinger em 1995, homenageando o protesto de mulheres não-judias contra a deportação dos seus familiares judeus presos pelos nazistas em uma fábrica para serem deportados e enviados a campos de concentração. Essas corajosas mulheres lograram êxito e seus filhos e maridos foram libertados.

Impactante a visita ao que restou do famigerado Muro de Berlim. Em 1945, o acordo de paz do pós-guerra determinou a divisão de Berlim em quatro zonas de ocupação: soviética, americana, britânica e francesa. As hostilidades começaram em junho de 1948, quando os soviéticos bloquearam Berlim Ocidental ao tentar controlá-la. O impasse de um ano marcou o início da Guerra Fria. Nos anos 1950, por questões econômicas, iniciou-se o êxodo para o lado ocidental, e em 1961 foi construído, pela Alemanha Oriental, o Muro. Dessa época até a reunificação, no final de 1989, oficialmente foram 147 as vítimas do Muro, dentre fuzilados, afogados ao tentar atravessar o Rio Spree em certos pontos da cidade, pessoas que morreram em decorrência de feridas graves ao pularem das janelas ou telhados de edifícios na linha de fronteira. Outros perderam a vida ao pisaram em minas, sem falar nos que se suicidaram. Extraoficialmente, o número é maior, mas sem provas documentais. Fica-se imaginando o sofrimento de tantas famílias com essa separação compulsória. Visitamos estação de metrô no trecho em que as vias de transporte eram bloqueadas antes da reunificação. Os berlinenses-ocidentais não podiam entrar no centro da cidade, situado na parte oriental, onde nos hospedamos. Após testemunharmos tudo isso bem de perto, valeu demais desopilar e jantar na gigantesca loja de departamentos KaDeWe, com praticamente tudo que o dinheiro pode comprar - felizmente com opções para todos os bolsos. Nada menos do que dois andares totalmente destinados à gastronomia. Inúmeros restaurantes, bares e artigos à venda, lembrando a Eataly de Nova Iorque, só que bem maior. Também vale uma visita, em especial no iluminado final da tarde, ao magnífico conjunto arquitetônico Sony Center, com sua construção de aço e vidro ocupando uma praça rodeada de inúmeras atrações.

Durante nossa estada, ocorria o famoso festival de cinema Berlinale, que bem reflete o cosmopolitismo e a diversidade (étnica, religiosa, cultural etc.) dos habitantes da capital da Alemanha. Filmes e categorias para todos os gostos. Conservadores e progressistas estão democraticamente contemplados, como conversávamos com a Silvia. Isso sim é sinal de povo desenvolvido. Cada um que eleja e assista ao que bem entender. O filme iraniano Sheytan Yojud Nadarad - algo como “Não há males” -, de Mohammad Rasoulof, levou o Urso de Ouro. Reflete, a partir de quatro histórias, sobre a força moral e a pena de morte em um regime despótico. O longa brasileiro “Meu nome é Bagdá” ficou com o Grande Prêmio do Júri Internacional da mostra “Generation”. Dirigido pela brasileira Caru Alves de Souza, o filme, conduzido pela protagonista Bagdá, revela o cotidiano de adolescente skatista em meio ao conservadorismo da sociedade. Bagdá vive em São Paulo e, ao se aproximar de outras meninas skatistas, vai afirmando sua identidade e autonomia. Pretendo assistir ao menos a esses dois vencedores do Festival. No hotel, para nosso espanto, nos deparamos com a atriz Sigourney Weaver, no alto do seu 1m82 de altura, na companhia da filha e de outras pessoas. Tal era a sua elegância, ostentando um vestido justo e preto, com seus inacreditáveis 70 anos, que não fui discreta a ponto de fingir não a reconhecer. Não resisti e tirei algumas fotos – ela percebeu.

Na privilegiada companhia da Silvia, por sinal superfã da atriz, visitamos o Memorial e Museu Sachsenhausen, antigo Campo de Concentração construído, em sua maioria, por prisioneiros, no ano de 1936. Foi o primeiro campo de concentração erguido após a nomeação do líder das SS, Heinrich Himmler, como chefe da Polícia Alemã. Como campo modelo próximo à capital do Reich, Sachsenhausen ocupou lugar de extrema importância no sistema de campos de concentração nazistas. Entre 1936 e 1945, mais de 200.000 pessoas foram aprisionadas, inicialmente opositores do regime nazista. Porém, posteriormente, e sempre em maiores números, minorias raciais e biológicas consideradas inferiores, e, a partir de 1939, cidadãos oriundos de países europeus ocupados. Embora não fosse propriamente um campo de extermínio, diferentemente de Auschwitz, na Polônia (providencialmente os de extermínio situavam-se fora da Alemanha), morreram dezenas de milhares de prisioneiros de fome, doenças, trabalho forçado e abusos, enquanto outros foram vítimas dos assassinatos sistemáticos das SS. Nesse campo, Central Administrativa e Escola de formação dos futuros comandantes de todos os campos, eram testadas formas de matar, a exemplo das câmaras de gás. Também havia crematórios por lá. Na Marcha da Morte, após o desmantelamento do campo, milhares de pessoas também perderam suas vidas. Mais de 3.000 doentes, incapacitados, cuidadores e enfermeiros deixados para trás no campo, foram libertados por soldados soviéticos e poloneses em 22 e 23 de abril de 1945. Então, três meses após a libertação, foi a vez de Sachsennhausen servir como campo especial soviético até março de 1950, período em que foram presas cerca de 60.000 pessoas, das quais 12.000 morreram por desnutrição ou vítimas de doenças.

Para além dos horrores da guerra, são inúmeros os magníficos museus berlinenses. Elegemos o Museu da História Alemã, dica da Sílvia, retratando a história do país da Idade Média até a queda do Muro e a reunificação da Alemanha. Ostenta, dentre inúmeras obras, uma gigantesca escultura de Lênin logo na entrada. Programa imperdível é destinar boas horas à Ilha dos Museus, conjunto de nada menos do que cinco museus cujo maior destaque é o Pergamonmuseum, construído para abrigar o colossal Altar de Pérgamo do século II a.C. Outra joia de valor imensurável é o imponente Portão da Babilônia (séc. VI a.C). No Neues Museum, tivemos a alegria de nos encontrarmos, face a face, com o original do famoso busto da rainha Nefertiti (as réplicas são muitas). Feito de calcário, com cerca de 3400 anos de idade, retrata a esposa real do faraó egípcio Aquenáton, uma das obras de arte mais imitadas do Antigo Egito. Devido à escultura, Nefertiti tornou-se uma das mulheres mais célebres da Antiguidade, bem como um ícone da beleza feminina. O famoso busto tornou-se um símbolo cultural da capital alemã, bem como do Egito Antigo. Também é tema de uma intensa discussão histórica entre os dois países, em vista da exigência das autoridades egípcias por sua devolução desde a década de 1920.

Das poucas compras que fiz na viagem, foi uma corrente com réplica da famosa escultura que não tirei mais do pescoço até o final da viagem. Próxima parada: Dresden, a magnífica capital da Saxônia, considerada a “Florença do Elba”.

 

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