O ronco, o cutucão e a intimidade

Maria Avelina Fuhro Gastal

Em menos de quinze minutos ele já estava dormindo. Percebi, pois, ouvi um ressonar leve. Peguei um livro, já que ainda não tinha sono.

À medida em que eu avançava na leitura, o ressonar ganhava volume. Passou a ser um ronco leve, logo ganhando vida própria. Impossível me concentrar no que lia. Peguei o celular, dei uma olhada nas redes sociais, comecei a jogar. Mas, agora o ronco falava comigo e era meio ensurdecedor. E eu não queria aquele tipo de conversa.

Pensei em um cutucão. Do tipo leve, mal um toque. Mas me dei conta que um cutucão é muito íntimo. Requer mais proximidade do que o sexo. E se eu fosse mal interpretada? Se ele achasse que eu estava procurando desculpa para acordá-lo? Para me aproximar? Recolhi a mão.

Voltei ao livro. Relia cada parágrafo inúmeras vezes. O som do ronco era sempre mais alto do que as vozes das personagens.

Tentar dormir, nem pensar. Não que eu não tivesse sono, mas não tinha o ambiente necessário, silêncio, penumbra, tranquilidade.

Quem sabe um movimento brusco surtisse efeito. Passei a me virar, revirar, mexer e remexer. Quase deu samba. Mas quanto ao ronco, no máximo uma engolida para ser liberado a seguir com mais potência. Nada interrompia aquele abalo sísmico e auditivo.

Eram os meus princípios ou um cutucão. Mas se eu não o beijaria na testa, nos olhos, não espremeria um cravo nas suas costas, não falaria sobre os meus sonhos, como daria um cutucão? Nem pensar. Percebi que havia incluído em minha lista mais um princípio, cutucão só com intimidade. Se eu tivesse obedecido à ela, não estaria naquela situação. Jamais fique embretada em um canto (a não ser em salas de aula), escolha sempre um lugar onde possa sair com facilidade ou, vá sempre no seu carro, assim pode decidir quando ir embora sem depender de ninguém.

Três horas e um pouquinho naquela agonia. Sem ler, sem dormir, sem conseguir pensar em outra coisa. Mais alguns minutos e teria que sair dali. Não tinha como ficar, nem queria. Como seria? Bastaria um “com licença” ou “desculpa, mas tenho que sair”? Ou teria que pular por cima dele e sair de fininho? Sem nenhuma palavra, sorriso ou contato visual?

Enquanto eu imaginava uma saída digna, como por milagre, ao entrar na avenida que dá acesso à rodoviária de Pelotas, ele acordou. Invejei o timing e a facilidade em dormir. Levantou, pegou a mochila e saiu a passo, sem nem ao menos me olhar para ver se estava acordada ou viva.

Eu fiquei ali um tempo. Deixei outros passarem. Não queria que pensassem que estávamos juntos. Eu sentia vergonha por ele, ele nem parecia ter se abalado. Será que sabe o quanto ronca?

Desci, comprei a passagem de volta para o início da noite, torcendo para não ter como companhia algum roncador desconhecido. Roncador do meu lado, só se eu puder também beijar a testa, os olhos, espremer cravos na costa ou falar sobre os meus sonhos. E cutucar.



 

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