Bonboniere de lembranças

Maria Avelina Fuhro Gastal

Poucas coisas me irritavam mais na minha infância e adolescência do que minha mãe dizendo que eu deveria fazer como a Pollyanna e jogar o Jogo do Contente. Sempre achei aquela personagem uma chata, maníaca e com um mecanismo de negação absurdo.

Nunca fiz do limão uma limonada. Chupo o limão puro mesmo, extraio o suco e a polpa com os dentes, até restar só o bagaço. Se duvidar, mastigo a casca e engulo.

É desse jeito que encaro a vida. Sofro quando tenho que sofrer, choro se tenho vontade, fico triste, desanimada, prefiro a dor da verdade do que a enrolação de uma mentira. Nunca fui dada a fazer de conta que está tudo bem se não está. Acabei tendo um papel muito duro em certos momentos da vida.

Mas nada disso faz de mim uma pessimista ou uma rançosa. O leve, o belo me encantam, mas, nos últimos tempos, tenho me dado conta que não os trato com a mesma valorização com que trato a dureza e a tristeza.

Resolvi, então, colecionar levezas. Iniciei 2020 separando uma bonboniere transparente para nela colocar papéis dobrados, coloridos, descrevendo momentos e sensações boas do ano. Minha ideia é de, na virada para 2021, reler cada um deles e relembrar o que me fez bem ao longo do ano.

Escolhi papéis verde para as lembranças familiares e com amigos, e rosa para as lembranças relativas à escrita, trechos de livros, momentos especiais de encontros e de cursos literários, cenas de filmes, frases, poesias, elogios ou críticas aos meus textos que tenham me tocado, desafios vencidos na escrita.

Apesar dos anos em terapia, levei quatro dias para me dar conta que eu não estava nas cores e temas escolhidos. Recaí ao me enxergar apenas como mãe, tia, vó, amiga. Nos papéis rosa, substituí a figura da profissional pela da apaixonada pelas letras. Mas eu, indivíduo, pessoa, mulher, não estava em nenhum deles.

Escolhi, então, os papéis brancos para mim. Talvez porque o branco possa representar o nada, o vazio, e preenchê-los comigo seria simbólico. Seria ocupar um espaço ainda sem cor, colocando ali todas as matizes e tons que me fizerem descobrir um pouco mais de mim mesma. Nos papéis brancos estarão descobertas, lugares, refúgios, encontros, reencontros, mensagens inesperadas, sorrisos, olhares, afagos, abraços, toques, sensações, possibilidades, elogios. Ainda caberá neles todo o batom experimentado, todo o risco corrido, todo o quilo ou grama eliminado, toda vez que me enxergar no espelho e gostar, a alegria por aquele vestido não comprado porque não tinha o tamanho P, ou por aquele vestido, se não comprado, pelo menos experimentado sem medo de não entrar em nenhum,

Os papéis brancos tentarão recuperar aquela menininha de quase dois anos que era tida como exibida, que cantava Catita pelos corredores do hospital onde o irmão nasceu, sem vergonha ou timidez. Uma menininha que só sei porque me contaram, pois dela não lembro de nada. Mas se um dia existiu, ainda está em mim.




 

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