Polenta bem temperada

Marta Helena Xavier

Polenta bem temperada
Marta Helena Xavier

Todo dia não é dia de festa, mas domingo sim, pelo menos na casa de Francisco. Dia de juntar a família. Misturar as gerações ao redor da mesa do almoço se tornou o prato principal. O cardápio não muda, mas, em compensação, as histórias trazidas por cada um sempre carregam novos temperos – o alimento de uma semana inteira para Francisco e Flávia.

Chegam aos poucos, sem hora marcada, trazem nas mãos toda a displicência típica dos domingos. Mesmo a rigidez de Francisco, sempre tão evidente, fica guardada entre os lençóis da noite de sábado. Só não mudam os gestos largos e a fala alta do povo italiano,tão enraizado em cada um deles. O silêncio nunca foi boa companhia dessas gentes.

A casa de dois pavimentos tem no andar térreo o seu coração,uma cozinha onde todos cabem e sobra espaço para qualquer intruso de última hora. Enquanto as vozes fazem um coro de muitos tons, os braços se entrelaçam entre pratos e talheres numa aparente confusão. No fim, surge uma mesa que atiça o desejo de sentar e comer.

Francisco ouve sua prole com os cantos da boca em sorriso. Enquanto escuta, inicia o preparo da polenta. Gosta de usar o fogão de tijolos da área externa junto à cozinha. Não tem pressa, saboreia cada detalhe, cada palavra que o vento carrega da cozinha ao lado. Sabe, o tempo galopa com a felicidade na garupa.

Dentro da casa, o desejo de todos sobre cada um, não permite um diálogo único, todos falam ao mesmo tempo, com a boca, os braços, as mãos, e às vezes também os ouvidos. Encostado na porta da cozinha – Artur, genro de Francisco, cruza os braços e observa. Dali tem uma visão de tudo, o povo falante e o sogro concentrado em frente ao fogão.

Artur, casado a pouco, ainda se adapta aos novos parentes. Reconhece sua timidez e a respeita. Precisa de tempo. Conhece o talento de Francisco com as panelas, inclusive no preparo da polenta na chapa.
Na cozinha dona Flávia prepara a macarronada e o frango ensopado. Vera, esposa de Artur, termina a maionese com a ajuda de Bia, a irmã do meio. Os outros se lambuzam no pão com manteiga para enganar a fome e descansar a língua enquanto mastigam.

Os pensamentos de Artur escapam pela janela, voam alto, pulam os muros e se misturam no tempo. Mas, hoje é domingo. E aqui, a fome traz Artur de volta. Consola-se entre as vozes e os aromas exalados pela cozinha.

Diante do fogão de tijolos Francisco se esmera. Força e ritmo nos braços em movimentos circulares no comando firme da colher de pau. Dentro da panela de ferro, a polenta responde ao calor do fogo, borbulha e pula. E os pensamentos de Francisco também se soltam feito pipa em dia de vento. Voam próximo às lembranças de Artur, mas sem tocá-las, pois não se invade o céu dos outros.

E foi quando o ranger da panela de ferro cutucou a atenção de Artur. Olhou para Francisco e viu o rosto do sogro molhado. O suor escorria pela testa, corria pelo rosto e se alojava no queixo. Depois pingava. Caía como conta-gotas, direto na polenta.

Artur paralisou, não sabia o melhor a fazer. Sua falta de coragem o fez calar. Olhava sem piscar o suor do sogro pingando e pingando na polenta quente. Será possível, ele não está sentindo tanto pingar? Não. Ele parece distraído. Deixou o corpo sozinho com a panela.

Desabrigado de ações, Artur começou a se imaginar comendo a polenta temperada com o suor do sogro. Dizer não gostar de polenta: impossível, já comeu outras vezes na companhia deles. Dizer estar indisposto? E a fome, como enganá-la? E depois, já tinha comido outras vezes a polenta do seu Francisco. E, muito provável, com o mesmo tempero. Mas, a consciência é nossa pior inimiga nestas circunstâncias.

Constatar a ignorância do resto da família provoca cólicas nas entranhas de Artur. Como inveja a felicidade deles! Maldita hora estar plantado naquela porta. Tem um enorme apreço pelo sogro, mas comer a tal polenta está fora de questão. Sem saber como sair desta situação, se deixa ficar grudado no marco da porta, a espera sabe-se lá do quê.

Acompanhando a angústia de Artur, vai o tempo, segue seu caminho sem abalos, até que, sólida como uma rocha, a voz de dona Flávia sentencia:

- Está tudo pronto, vamos comer antes que esfrie. Francisco traz a polenta.

Pronto. É agora. Artur empurra o marco da porta com o corpo querendo entrar nele. E quando tudo parece perdido no mundo do desespero, chega o barulho de algo se espatifando – a polenta, sem nenhum pudor, se espalhada no chão, a panela emborcada para baixo e seu Francisco sentado no piso de pernas abertas com olhos arregalados.

Gritaria e corre- corre. Tudo e todos ao mesmo tempo, menos Artur. Este permanece imóvel, acompanha com os olhos o andar da polenta cobrindo o chão, quase chegando aos seus pés. Até então, nunca tinha acreditado em milagres.




 

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