Sete dias na Macumba

Marta Leiria

Sou assídua frequentadora de Congressos de Psiquiatria e de Psicanálise – desde que fora de Porto Alegre. Na condição de acompanhante do Don Marco Pacheco. Não perco a oportunidade de usufruir de múltipla agenda, social e pessoal, com direito a eleger por onde andarilhar com minha providencial bolsinha peruana – finjo ser mais alternativa do que sou para não repararem nos poucos pertences que me fazem companhia.

Como o evento era no Riocentro, próximo à Barra da Tijuca, bairro vizinho ao Recreio dos Bandeirantes onde fica a Praia da Macumba, o Marco realizou o desejo de surfar nesse paraíso do longboard clássico. Em minha enxuta bagagem de bordo, roupa de caminhada, de praia e As três irmãs: contos, de Anton Tchekhov (1860/1904). Além de me surpreender com a deslumbrante vista do mar, dos morros e das pedras, outra descoberta digna de nota fiz já instalada na areia: o escritor russo, bem antes de Nelson Rodrigues, já sentenciava; “pensar que a literatura tem como finalidade descobrir as pérolas e mostrá-las livres de qualquer impureza equivale a rejeitar a literatura. Esta só pode ser classificada de arte quando pinta a vida como ela é”. Que tal?

No primeiro dia em que o Marco foi para o Congresso, desci do Uber no início do Leblon (quando termina o Vidigal) e resolvi caminhar até a Pedra do Leme, cerca de 7,5 km. Além de admirar o calçadão e o mar, aprecio ver novas paisagens enquanto caminho a passos rápidos, contemplando gente de todas as idades entretida nos mais variados jogos na beira da praia, de bike, ou a pé como eu. Estímulo e tanto para manter o compromisso com o movimento. Já me hospedei em diversos hotéis na Zona Sul. Observei que muitos deles mudaram de nome (proprietário) nos últimos tempos, o que, espero, não seja um sinal de decadência dos icônicos Leblon, Ipanema e Copacabana.

Desde meus tempos de corrida de rua, já percebia que não raro a solução para os processos difíceis (a luz), vinha com mente e cérebro (corpo) em movimento. Curioso. Lá na Praia da Macumba, li algumas lições do professor de filosofia norte-americano John Kaag, que traduziu com clareza essa minha suposição, em Caminhando com Nietzsche: “Andar é uma atividade com benefícios práticos e físicos, mas, para os artistas e pensadores como Nietzsche, também está intimamente ligada à criação e ao pensamento filosófico. Deixar vagar os pensamentos, pensar rápido, chegar a uma conclusão – essas não são apenas figuras de linguagem, refletem um estado de amplitude mental que só atingimos em movimento.” Bem isso!

No dia em que choveu, almoçamos no Shopping da Barra, onde resolvi, na sequência, encarar O Coringa. Outra surpresa: construíram um prédio anexo, o New York City Center, complexo de restaurantes, lojas e cinema com nada menos do que dezoito salas com poltronas superconfortáveis, um luxo! Não vou dar spoiler, só umas palavrinhas: imperdível a magistral construção psicológica do personagem central, em mais uma notável interpretação de Joaquin Phoenix. Produção mais do que acertada ao descartar os futurísticos e estonteantes efeitos especiais - só não digeri bem o viés um tanto panfletário do filme.

No dia mais ensolarado, percorri toda a orla até o final da praia da Macumba, para os lados da Praia do Secreto. Então tomei o sentido oposto, rumo ao Recreio dos Bandeirantes e à Praia da Reserva. Paisagem inesquecível. A intenção era boa: alcançar a Praia da Barra, junto à Lagoa de Marapendi. Mas diante do deserto completo da Praia da Reserva, só vegetação de um lado da estrada, e mar do outro, salvo algum surfista aqui e acolá, a coragem deu lugar à prudência. E, a uma certa altura, capitulei e voltei.

Hora de me instalar na areia com A elegância do agora, de Constanza Pascolato, adquirida na espetacular Livraria da Travessa. Aos 80 anos, exemplo de mulher muito à frente de seu tempo. E que dá uma aula de elegância, criatividade, sabedoria. Algumas de suas pérolas: “pontualidade é qualidade indispensável para quem pretende manifestar o mínimo de respeito pelo outro”. Ou: “Elogiamos aqui a etiqueta igualitária, contemporânea, a arte de demonstrar respeito pelo outro independente de posição social, raça, gênero ou faixa etária.” Sobre a necessidade de meditar: “Perdi todas as pessoas que cuidavam de mim. Não tem mais ninguém na fila, sou a primeira na linha de tiro. Tenho que estar bem preparada”.

No dia seguinte, hora de voltar a Porto Alegre, matar a saudade do chimarrão e do churrasco. E de transpor para o papel minhas impressões sobre o que li, vi e descobri nesse Rio de Janeiro antes por nós desconhecido.

 

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