Daqui nasceu Dois Nós

Carolina Panta

Substantivo Feminino
“Deixai aqui toda esperança, vós que entrais.”
Dante Alighieri

Fausto não estava bem, há dias reclamava da dor. Acreditava em sua existência finda no enrijecer das pálpebras de um sono profundo. Falou, no delírio da febre, no medo da morte e do inferno. De certa forma, tinha razão.
A notícia veio em forma de telefonema em horário inapropriado. Causas e efeitos de natureza extraordinária fizeram de mim protagonista do insólito. No caixão, seria ele mero figurante. Um objeto cênico obrigado a ouvir de alguns presentes suas piadas prontas de jornal.
Toda a atenção inicial foi dispensada na escolha entre mogno ou carvalho. Alojaram Fausto dentro do esquife de matéria morta. Estava envolvido em um manto branco de crisântemos. Aliás, era um lindo receptáculo para disfarçar suas orelhas já murchas.
Acabaria rápido. Pedi que fosse assim. Lembro-me de como ele detestava esses rituais. Pensei em como ficaria nervoso, mexendo nas chaves dentro do bolso. Era o tipo de pessoa que só aguentava até a vela ser soprada, aborrecia-se com facilidade. Não pôde irritar-se, contudo, com o discurso pregatório de metáforas barrocas do pároco de plantão. O céu, o inferno, a salvação das almas: de certa forma, o padreco tinha razão.
O cortejo saiu. Perdi o rosto das pessoas na luz projetada pelo crepúsculo. O presentes caminhavam sob a égide do tempo, conduzidos pela prova maior de sua insignificância. Pequenos e efêmeros: eram apenas sombras impressas no chão.
Desenhei em contrastes o momento. Rascunhei os traços expostos à luminosidade. Fotografei com a retina dos olhos afogados o instante único. Quem sabe eu precisasse revisitar esse momento vezes e mais vezes para compreender ser aquele o fim de nossos dias juntos, de suas bochechas bêbadas de vinho. Precisaria eu, dali por diante, pensar no pretérito – tempo verbal de memórias ocasionais. Sem suspiros, sem cheiro de perfume. Fausto parou de ser.
Cessaram as elocuções, as conversas altas no corredor do prédio. Ninguém mais poderia rir de suas piadas políticas nem mesmo elogiá-lo quando usava a camisa xadrez azul. Não piscaria mais de canto de olho constrangendo a bibliotecária da escola em que trabalhava, não confortaria mais o amigo nem mesmo suas amantes. Fausto parou de ser.

Nunca o amei. Admirava seu caráter, seu poder de argumentação e a massa à carbonara preparada aos sábados. Amava verdadeiramente, com garras, o Fausto das narrativas embriagadas em dias de verão. Fausto era, para mim, não substantivo próprio carregador de personalidade herdada de família matriarcal, mas apenas um inteligível nome comum, rasteiro e concreto. Talvez fosse verbo, e eu, apaixonada por suas ações.
Assim, parasitei Fausto. Suguei-o. Drenei até o fim sua essência de flores que não chegaram a nascer. Alimentei-me dele. Fiz de suas virtudes a iguaria apaziguadora da minha ressaca na primeira hora da manhã.
Ele me ofereceu a alma, mas foi inevitável o destino a que se comprometeu. Comi Fausto e, satisfeita, deixei-o agonizante numa cova de cemitério, vestíbulo do inferno. Abandonei-o no refúgio das almas condenadas dos hereges, pois não acreditava em Deus. Fausto, de certa forma, tinha razão. Estava correto sobre seu post mortem enquanto delirava de febre. Só não poderia prever terem as almas humanas, profanas ou não, a mesma vala. Lá descobriu, finalmente, serem eles todos iguais.
Anos depois, quando o encontrei já resignado ao destino que lhe fora imposto, ele me disse ter saudade dos nossos corpos e suores misturados. Olhou-me nos olhos e, um pouco entristecido, despediu-se. Deu adeus. Virou-se de costas, mas ainda pude ouvir seu lamento:
- Só eu me decompus.
De certa forma, Fausto tinha razão.

 

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