Tirando o Couro

Mario Ulbrich

Tirando o couro
Um casebre de chão batido com paredes de pau-a-pique e frinchas no telhado de Santa Fé. Uma pequena e mal provida horta, alguma pouca criação. As tulhas de mantimentos tão vazias quanto a barriga da mulher e a do menino. Leocádio acreditou ter chegado a hora de um basta.
Trabalha sozinho num fundo de campo da Fazenda do Beiral, na lida com o gado. Do patrão raramente tem notícias! Do minguado salário, por largos períodos não vê nem o rastro. Dívidas se acumulam na pulperia do Ambrósio.
Havia ido à sede da estância e a um “buenas!” dirigido a um agregado que trabalhava junto às casas, ouviu apenas um muxoxo acompanhado de:
- O patrão está ausente.
Decidiu por mais uma e derradeira vez procurar o patrão. Encilhou o baio e a égua velha, ajudou sua mulher a se ajeitar com o menino nas encilhas e tomou a estrada disposto a resolver a situação.
- Parece não ter coração o homem; não se importa com sua gente. Não há justificativa para este descaso. Nos trata pior do que aos animais!
Era longo o caminho até a sede. Léguas e léguas de campo despovoado. O choro sentido do menininho, os gemidos da parceira, flor de seus cuidados e tão precocemente envelhecida. Sentiu o toque frio do estribo em seu pé, pelo buraco da sola da bota. Puxou a aba do chapéu, mais para esconder sua vergonha do que para proteger os olhos. Não conseguia parar de pensar que o patrão teria que entender a situação e acertar os salários.
Tocou os cavalos, sem lhes dar descanso, determinado a não realizar qualquer parada. Saíra de manhãzinha, bem antes do nascer do sol e já o sentia a pino. Por certo enfrentaria a escuridão da noite ao retornar.
Imerso em seus pensares, afogado em seus tormentos, nem bem prestava atenção à estrada. Mentalmente preparava sua fala; afinal, ele estava apenas pleiteando o que por direito era seu.
Os cavalos davam sinal de cansaço. A parceira não se queixava, mas não conseguia esconder seu desconforto. O guri finalmente entregara-se ao sono, quase um desmaio, no colo da mãe.
Passado algum tempo Leocádio susteve o andar dos animais, ajudando a companheira a apear. Sabia agora encontrar-se próximo da fazenda. Alimentava a esperança de que os patrões não lhe negariam um pouco de comida. Entendia ser a vida dura, mas acreditava na força de seu trabalho. Não era um peso morto sustentado pelo fazendeiro. Encoberto pela aparência pobre de sua estampa, mantinha intacta sua dignidade.
Ajudou sua mulher a montar novamente e esporeou a montaria ganhando a estrada com a égua a cabresto, em jornada próxima de seu final. Refreou a andadura das animálias quando divisou o portão da casa. O sol agora mostrava-se inclemente e o calor somente suportável sob as sombras dos arvoredos.
Aproximando-se percebeu o ruído de pessoas no capão atrás da sede. Desta vez com certeza o Patrão estava em casa. Apeou junto a porteira e ao ouvir o alarido da cachorrada anunciando sua chegada, respeitosamente tirou o chapéu e bateu palmas.
Ninguém apareceu para o receber. Insistiu no chamado, gritando um Oh de Casa! Se deu conta de que o alarido que se ouvia vindo do fundo da casa, cessara de repente. Ouviu trôpegos passos de gente que se aproximava. Logo reconheceu o velho empregado, que de forma desaforada lhe perguntou o que queria.
- Falar com o patrão!
- Perdeu viagem. A família está para a cidade!
- Tenho certeza de que estão em casa. O alarido das falas e risadas ouvi da estrada. Apressa-te, diz para o patrão que é caso de precisão. Não retorno sem falar com ele.
Dando ênfase à sua fala, levou a mão à cintura deixando à vista o três oitão enfiado no cinto. O empregado afastou-se, sem abrir o portão de acesso ao pátio. Leocádio ficou a examinar a casa e seus arredores. Vivia bem o patrão e sua família. A fazenda era produtiva, o gado gordo e as moedas por certo não deixavam de encontrar lugar seguro nos cofres da estância. Estava engasgado com a atitude do patrão. Ele não estava o tratando como a um amigo e aliado. Seus pensamentos foram interrompidos pelo retorno do empregado que anunciou:
- O patrão não vai te receber, está ocupado. Vai embora que ele nada te deve. Espera ele mandar alguém te procurar no teu rancho. Ele te paga quando e como a ele convém. Volta ao trabalho!
Leocádio sentiu seu sangue ferver. Uma velha história lhe veio à mente. Nos idos de sua juventude, quando se estabeleceu a mando do patrão naquele inóspito fundão onde morava, foi atacado por uma enorme onça. Antes de ele se dar conta de sua presença, ela saltou em suas costas e derrubou-o da montaria; buscou incontinente abocanhar sua garganta. Leocádio lutou com todas as forças que dispunha e por um tanto de sorte, conseguiu sacar o velho revólver que sempre levava na cintura. Disparou até esvaziar o tambor, mirando os olhos da fera e quase paralisado pelo medo custou a se dar conta de que a pintada estava caída imóvel, abatida. Tem até hoje o couro dela pendurado na parede, único enfeite de seu ranchinho, e que mostra sempre que conta a história, para convencimento dos ouvintes incrédulos.
Num gesto brusco empurrou o portão e junto com ele o velho empregado; forçando a passagem dirigiu-se para os fundos da residência. Não iria embora sem expor sua precisão e receber seu dinheiro.
O patrão sentado em confortável cadeira, acompanhado de sua mulher e de um outro casal de amigos, sem bem avaliar a situação cometeu um único e derradeiro erro. Colocou-se com rapidez de pé, levando a mão à cintura na intenção de sacar uma arma. O convidado o acompanhou no gesto atiçando os cachorros contra ele.
Leocádio incontinente sacou seu berro e com dois certeiros disparos abateu os seus desafetos. Mandou o empregado prender a matilha e ficou olhando as mulheres tentando socorrer os maridos já defuntos. Agarrou a patroa pelo braço e a arrastou até o interior da casa para que mostrasse onde era guardado o dinheiro. Recebeu dela uma velha arca recheada de moedas, conferiu seu conteúdo e deixou a mulher ali prostrada.
Retornou ao local onde estiveram almoçando os patrões e apanhou um espeto com um farto pedaço de assado. Afastando-se da fazenda, em direção contrária ao de sua vinda, pôs-se mais uma vez a divagar. Não ficava longe dali a fronteira e ermos eram os caminhos que lhe davam acesso. O campo não guardaria os seus rastros, protegendo-os de possíveis perseguidores.
Voltou seu pensamento para o couro da fera que lhe atacara quando moço. Se destacava da parede como um aviso. Pena que teria que o abandonar! Uma lástima que não pudesse colocar ao lado do couro da onça a pele curtida do seu extinto patrão. Bem que ele lhe havia despertado uma quase incontida vontade de mais uma vez dar serviço para sua carneadeira.



 

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