O Crash do Cascão

Gilmar Peres

O boato era que ele fora contratado pela Asset por dois motivos: cumprir a lei de cotas para pessoas com necessidades especiais e também pelo parentesco distante com um dos sócios. Alguns reconheciam nele um dom especial para os números, gráficos e técnicas como lógica computacional, análise de relatórios e até projeções. Trabalhava ali há algum tempo sem uma carteira de investimentos para gerir. Por diversas vezes, levou suas simulações para o chefe olhar que sempre deixava para depois e não retornava, deixando-o angustiado. Certamente, o gerente não o via como um trader igual aos demais.

Na verdade, não tinha apenas virtudes, muito pelo contrário naquele contexto. Algumas coisas saltavam aos olhos de todos no escritório, como o problema com a higiene pessoal, o jeito de falar alto e um pouco desconexo com os assuntos, a dificuldade em se relacionar, grandes momentos de introspecção, entre outras coisas. Inclusive, ninguém queria sentar perto dele naquela bancada apenas de telas de computadores, teclados e mouses. Além da cadeira giratória, evidentemente. Ficavam varias pessoas nas ilhas, uma do lado da outra, e de frente também. Praticamente acotovelados ou separados apenas pelas duas a três telas por pessoa. Como não havia lugar definido, ocupavam o local por ordem de chegada. O último ficava ao lado dele o dia inteiro. Seu odor impregnava aquele canto da sala, principalmente em dias frios ou muito quentes. Todo o tipo de indireta era dada. Ou ele não entendia, ou não queria entender.

Os colegas faziam comentários maldosos e se indignavam no porquê de não darem logo uma carteira para ele administrar. Assim, faria bobagens e seria mandado embora logo, limpando o ambiente para poderem trabalhar melhor. Melhor seria dispensá-lo de uma vez porque não era justo todos trabalharem e serem cobrados por metas, enquanto ele ficava apenas nos simuladores há algum tempo. Os demais tiveram pouco tempo de treinamento e foram logo para a ativa, respondendo pelos seus atos. Alegavam uma proteção desmedida. Entretanto, ninguém tinha coragem de se manifestar abertamente.

Quando percebia algo muito forte ou recebia reclamações, o gerente dava desculpas esfarrapadas. Sua especialidade. Então, tinham que aceitar ou pedirem para sair. Salvo se o Cascão, como se referiam ao trader jocosamente, pedisse demissão. Como ele não entendia as ironias e deboches, provavelmente ficaria ali por um bom tempo. O chefe sempre cobrava respeito porque também não queria se incomodar com a direção e colocar seu cargo, com bônus recheados no final do ano, fora.

Assim, o tempo foi passando e as coisas não melhoravam. Pelo menos uma vez por semana, normalmente às sextas-feiras, ele entregava seus modelos, relatórios e simuladores numa pasta toda ensebada, com orelhas nos papéis e gráficos borrados para o chefe, tentando argumentar. Não recebia muita atenção porque o líder da equipe precisava ouvir o que seus funcionários mais antigos tinham produzido ou percebido no mercado financeiro, tentando obter boas rentabilidades às carteiras. Estava pouco ligando para o software novo, com parametrizações complicadas e não entendia bulhufas dos tais algoritmos. Mesmo porque, ninguém até então havia conseguido fazer o sistema funcionar satisfatoriamente.

Normalmente, o chefe se dirigia até a estação de trabalho individuais, onde via os gráficos e as justificativas orais e ali mesmo já deliberavam. Como não era muito agradável ir até o Cascão, preferia receber o material daquela forma mesmo, na pasta ensebada. Ele dispensava logo o funcionário dizendo que analisaria no final de semana e na segunda-feira mandava a secretária devolvê-la, dizendo que ele ia muito bem e logo encontraria uma carteira para ele. Na verdade, nem olhava. Era sempre a mesma coisa e havia passado um bom tempo desde a contratação. O Cascão não demonstrava se importar com aquilo, voltava logo ao seu mundo peculiar.

Em função das características, muita coisa acabava caindo em suas costas sem ter responsabilidade. Certa vez, alguém entupiu a privada do banheiro masculino e colocaram a culpa nele. Noutra, derramaram café na copa e também colocaram a culpa nele. Houve uma vez em que arranharam o carro do chefe e novamente lhe atribuíram a responsabilidade, mas o segurança viu nas imagens que tinha sido outra pessoa por acidente. Quando essas coisas aconteciam, ele ficava nervoso e caminhava muito, gesticulando, resmungando coisas não inteligíveis e transpirava muito. Porém, não era de discutir ou retrucar. Não sabia como argumentar, muito menos como se defender. Apenas, de vez em quando, falava alto e repetidas vezes “Não fui eu! Não fui eu!”.

No episódio do carro, o diretor do escritório desceu de sua sala no andar de cima, reuniu todo mundo e sem citar nomes, exigiu mais companheirismo e coleguismo da equipe. Não admitiria mais fofocas e quem não estivesse satisfeito, deveria procurá-lo, numa clara menção aos faladores de “peça demissão”.

De fato, o trader tinha algumas dificuldades em servir o café, a água e até em caminhar nas escadas, quase derrubando os colegas. Mas era seu estilo e ninguém conseguia mudar. Volta e meia alguém tentava orientá-lo, principalmente os mais velhos. Ele ouvia com atenção, melhorava alguns dias e em seguida voltava a fazer as mesmas coisas. Não prejudicava ninguém, muito pelo contrário. Muitos tentaram lhe prejudicar com fofocas e comentários maldosos. Na verdade, era a sua condição que o fazia assim. Parecia uma criança enorme, com mais de cem quilos, presa num mundo distante, de inocência e desatenção.

Até que um dia, Cascão se desorganizou de vez e de uma forma descontrolada. Começou a emitir sons altos e incompreensíveis. Alguns gritos e se levantou correndo. Foi até a mesa do gerente, apontando para seu canto. Todo o escritório parou, uma colega se levantou e gritou “uma barata”. Ela saiu correndo e pedindo que os colegas mais velhos a matassem. Ele continuou gritando e apontando para a tela. Um dos colegas mais velhos tirou o sapato e esmagou o inseto, deixando uma gosma na parede. O escritório em polvorosa por alguns instantes, passou a rir do comportamento dos dois por causa de uma simples barata. Mas Cascão não parava e ficou ainda mais agitado até cair no chão, convulsionando.

A secretária correu para o telefone chamando socorro e muita gente ficou em volta por curiosidade. Outros fugiram com medo de testemunharem a morte do Cascão, debatendo-se com os olhos virados e espuma escorrendo pelo canto da boca. A ambulância demorou a chegar, pelo menos a crise havia passado. Graças à senhora da limpeza de quem poucos sabiam o nome, ele não se afogou com a própria baba. Ela tinha experiência porque uma pessoa a família sofria algumas convulsões de vez em quando.

Cascão foi parar na ala psiquiátrica de um hospital. O plano de saúde cobria alguns dias, depois o trocariam de local. Os médicos estimavam que ele ficaria um bom tempo parado até se recuperar. O sócio com um grau de parentesco programou uma visita e para puxarem o seu saco, o diretor e o gerente foram juntos. Era quinta-feira pela manhã. Eles conseguiram acessar o quarto, levaram frutas e outras guloseimas que ele adorava comer e muito, por sinal. O jovem estava parado olhando para a janela, contemplando o infinito, sentado numa cadeira de canto e uma xícara feita de plástico com chá esfriando numa mesinha auxiliar.

Os visitantes entraram com a ajuda e anúncio de um enfermeiro forte todo de branco. foram até a direção do paciente. Ficaram ali por um tempo, onde seu parente ficou com os olhos marejados, compadecido pela situação, observando o paciente inerte. Sabia que a família estava sofrendo, mas ele havia ajudado como podia. Inclusive, tinha um grande problema nas mãos. Tentou ajudá-lo e acabou assumindo responsabilidades, ouvindo cobranças dos demais sócios. Logo, o grupo percebeu que ele não estava interagindo e se entiram mal no ambiente, resolveram ir embora e se despediram. Quando estavam na porta, o rapaz falou alto:
- Crash.
Eles pararam e o sócio perguntou:
- O quê?
- Crash. Vem um Crash grande pela frente. Crash.

Ele repetiu diversas vezes a mesma palavra e ficou um pouco incomodado, desorganizando-se novamente. O enfermeiro disse que provavelmente precisaria falar com o médico para reforçar a medicação. Era melhor irem embora. Na saída, o sócio perguntou aos demais:
- Que dia é hoje?
- 24 de outubro. Uma quinta-feira. Igual ao Crash de 1929. – respondeu o gerente orgulhoso por conhecer a data da crise americana que abalou o planeta e mostrando serviço também.
- O que ele fazia no escritório? – perguntou o sócio.
- Ele ainda estava no ambiente de testes e simulações. Trabalhava também naquele software novo. – pigarreou o gerente novamente.
- Aquele que ninguém conseguiu parametrizar, muito menos operar?
- É chefe, alguém precisava fazer esse trabalho – disse o diretor ajudando o gerente, como quem se desculpasse.
- Acho que devemos ir todos para o escritório agora e darmos uma olhada no trabalho dele.

O diretor e o gerente ficaram quietos. No fundo, reprovavam a reação do sócio. Ele falava aquilo apenas por ser parente. Não haveria nada interessante no trabalho e atrapalharia os planos de ambos. Um pensava em almoçar com a esposa e o outro passaria numa loja. Mudaram de planos com a seriedade do patrão falando e perceberam que ele iria junto. Quando chegaram ao escritório, haviam limpado o lugar onde o Cascão sentava. Era quase sempre o primeiro a chegar e ninguém o queria por razões obvias. Olharam uma pilha de papel com orelhas, marcas de dedos ensebados e até um tatu de nariz com um fiapo de cabelo dentro de uma pasta suspensa. Resolveram olhar o material assim mesmo, com um pouco de nojo.

Assustados com o que perceberam, ligaram o computador e acessaram o banco de testes onde Cascão fazia as parametrizações no sistema novo e suas simulações. Havia algoritmos complexos rabiscados no verso de folhas reutilizáveis com gráficos apontando para uma queda abrupta dos mercados, similares às crises de 1929 e 2008 , com muitas anotações a lápis de ponta rombuda. Havia fartas informações e textos explicando as premissas, as variáveis, as margens de confiança e outros números. O Sócio olhou para o diretor e o gerente indagando se eles realmente analisaram aquilo. Ouviu desculpas nada convincentes e resolveu fazer uma reunião de equipe urgente.

Naquelas alturas, todos sabiam do acontecido, mas debochavam entre caras e bocas. O que o Cascão teria visto em seus gráficos e modelos quantitativos que os demais, com anos de experiência, não conseguiam ver? Os analistas mais experientes foram questionados e teceram cenários como inflação, taxa de juros, câmbio, balança comercial, controle fiscal. O que o sócio chamou de “blá, blá, blá”. Passado meia hora e com um bombardeio ferrenho de todos, tentando desconstruir o trabalho de Cascão projetado numa tela enorme, de uma sala luxuosa e com vista magnifica do centro financeiro da cidade, quando um mini artefato nuclear explodiu num estrondo gigantesco a vários quarteirões dali, causando um zumbido ensurdecedor, levantando um cogumelo gigante, quebrando vidraças, deixando entrar uma nuvem de poeira e um vento muito forte desequilibrando todos na sala, causada por uma onda de choque violentíssima e radiação. O caos se instalava num mundo complicado e de relações conturbadas.

O maior atentado terrorista da história, desencadeando crises represadas mundo a fora, confirmavam o Crash do Cascão.

 

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