Tela negra

Maria Avelina Fuhro Gastal

Nossa diferença é de nove meses. Ele é de setembro de 1957 e eu de junho do ano seguinte. Mas só quando eu tinha seis meses passou a fazer parte de nossas vidas. Dividia com ele meu pai. As tardes e noites eram dele e as manhãs e madrugadas minhas.

A divisão não chegou a ser problema. Morávamos no andar de cima, assim muitas vezes vi meu pai nos horários que não eram meus.

Com a chegada de meu irmão tivemos que nos mudar. Não havia espaço para todos. Não fomos para muito longe, assim meu pai poderia dar conta dele e de nós.

À medida que foi crescendo, como todo adolescente, passou a exigir mais de meu pai. As madrugadas de sextas e sábados passaram a ser dele também. Nesta época meu pai já cuidava de muitos outros que foram se aproximando aos poucos. Juntávamo-nos a eles e a diversão era garantida
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Ele presenciou muitos risos, lágrimas, roçar furtivo de mãos e beijos iniciantes que faziam todo o nosso corpo derreter. Soube silenciar e guardar para si nossos segredos.

Com trinta e sete anos deixou de existir. Meu pai morreu um ano antes. Melhor assim. Teria sido insuportável para ele acompanhar o desfecho.

Hoje vive na minha memória e na minha história. Da infância guardo a correria do Tom e Jerry e a voz dos baleiros, balas. Da adolescência, American Graffiti, e o amor de Romeu e Julieta. Da vida adulta, a dureza de Pixote, a lei do mais fraco e a libertação de Thelma e Louise.

Evito passar por ele. Se passo, não olho. A ampla porta de vidro que mostrava um enorme espelho ao fundo foi substituída por um portão de cor ocre, em madeira barata. Seu espaço invadido por carros, que pagam para ficar ali mais do que pagávamos para sonhar, viajar, nos emocionar.

Onde deveriam estar as fotos de Alain Delon, Al Pacino, Elizabeth Taylor, Ema Thompson e de tantos outros de igual talento, estão as fotos de saladas, carnes e pratos de um buffet a quilo, sem nenhum charme.

Até seu nome foi arrancado. De longe se podia enxergar o luminoso na vertical que avançava sobre a calçada. Hoje não há nada.

Não foi só ele que sucumbiu à violência e à insegurança. Perdemos as ruas. Nelas não há mais cinemas. Da rede que meu pai tanto cuidou, restaram alguns esqueletos ocupados por estacionamentos, restaurantes rápidos e academias. Lugares de muita gente e pouca emoção. Outros sumiram, como se jamais tivessem existido.

Em um curto espaço de tempo perdi meu pai e os lugares da minha infância e adolescência.

Os imponentes índios Guaranis que ladeavam a sala de projeção daquele que era nosso preferido, deixaram-se queimar em 1996. Sabiam que ali jamais seria sua Terra sem males.


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Escrevi esse texto em 2014, em uma oficina com Luís Augusto Fischer. Na época, ainda não havia o Zaffari que hoje ocupa o espaço que foi, e sempre será para mim, do Cinema Cacique. Impossível pensar no meu pai e não pensar no Cacique. Ainda o enxergo lá, em uma salinha que só nós, filhos privilegiados, sabíamos que existia.

Quem conheceu meu pai deve lembrar da fala enrolada, difícil de decifrar, do prazer em descobrir bolo, pães, patês, sanduíches ou sorvetes nos mais diversos pontos de Porto Alegre e de visitá-los a cada fim de semana para ter em casa o melhor para receber os filhos, netos e amigos. Era expert em promover churrascos e em terceirizar a execução. Quem teve que falar com ele ao telefone, sabe o quanto era difícil. Frases curtas, impacientes, sempre pronto para desligar. Odiava telefone. E nisso sou totalmente ele. Roncava como um monstro, embirrava como criança, protegia a família como ninguém.

Conheci a essência do meu pai em dois momentos cruciais da minha vida: na primeira gravidez e na minha separação. Encontrei nele todo o aconchego que precisava e, com certeza, sem ele talvez eu tivesse fracassado.

Ele ficou completo ao se tornar avô. Inventou circos, brincou de bonecas, criou brincadeiras loucas na piscina.

Tenho saudades. Muita. Queria poder contar para ele que sou avó e aprender com ele a desobedecer aos pais. Queria ter a chance de dizer da importância dele na minha vida e mostrar, na minha sala, o porta retrato com todos os irmãos, as irmãs, as cunhadas e os cunhados dele, meus tios. Queria que ele soubesse que hoje me sinto inteira, sou Fuhro, sou Gastal, mas, acima de tudo, sou eu. Queria poder dizer o quanto o amei.

 

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