A primeira e a última dança entre nós

Gilmar Caldas Peres

A Teca usava um vestidinho cor de rosa colado ao corpo, maquiagem leve e perfume adocicado em nossa primeira dança. No outro lado do salão, conversava com algumas amigas, bebendo refrigerante. Ela sempre gostou muito deles. Naquela noite, estava interessada por um formando da escola, mas ele tinha outra em vista. Não podia tirar a razão. De fato, era muito bonita a menina com quem “ficou”. Depois de perceber o ciúme dela, vi uma oportunidade de me aproximar.

Éramos colegas há algum tempo, então foi fácil puxar conversa, mesmo não sendo próximos. Ela sentava na frente da professora, eu no fundo da aula. Volta e meia tínhamos brigas de adolescentes ou da turma da frente contra a de trás. Depois, fomos amadurecendo e com o passar do tempo, a menina magricela, de cabelo escorrido e aparelho nos dentes, foi se tornando mulher, enquanto eu ainda era magro, tinha espinhas e a barba recém estava surgindo, num fio aqui, outro acolá. A vida é mais cruel para os homens nessa época, depois nos vingamos.

Falamos um monte de bobagens sobre as quais eu nem lembro. Sei que a fiz rir bastante, esquecendo o formando. Eu me interessava por uma menina de outra turma. Porém, ela não foi à festa. Então, surgiu ao natural minha aproximação. Não ter segundas intenções, talvez tenha me ajudado a ficar tranquilo e não espantá-la, como acontece pela inexperiência. Conversamos por bastante tempo e eu ainda não costumava beber. Pelo menos não muito.

Naquela época, havia um espaço para as músicas lentas nas festas. Era o momento quando, normalmente, o “cara” tirava a “mina” para dançar. Após reduzir o giro do globo de luz, deixando o local mais escuro para criar um clima, o DJ colocou uma música internacional da qual me lembro até hoje, era “I Should Have known Better”. Um tal Jim Diamond a cantava. A Teca adorava essa música e eu fingia não gostar porque era melosa demais. Em todo o caso, olhei para ela e disparei um “vamos dançar?”.

Ela não titubeou, entregou o copo de “refri” à amiga desanimada e fomos para o meio do salão de mãos dadas. Havia um problema: eu não dançava bem, mas como o local estava cheio, batia de propósito nos outros casais, todos conhecidos, colocando a culpa neles pelo meu descompasso. Ela não deu importância. Era nossa primeira vez tão perto e quando coloquei minha cabeça no seu ombro e senti a maciez do cangote, subiu um frio na minha espinha. Fiz força para ela não perceber minha empolgação quase imediata. Para dizer a verdade, eu vi a pele dela arrepiando também, foi quando me senti seguro. “Antes do cantor começar a gritar “ai ai ai ai” eu percorri o pescoço dela com meus lábios, suspirei na orelha, encostei meu rosto na sua face e tasquei um beijo. Não respondeu de imediato, mas em seguida o devolveu. Seria o nosso primeiro e com o “I love you” da música ao fundo. Foi, talvez, a melhor noite da minha vida.

...

Anos depois, estávamos numa festa de Igreja quando tocou uma música odiosa e fui praticamente forçado a dançar. Não por ser o parceiro desejado, mas se não fosse eu a vítima, quem mais seria? Nós nunca formamos um bom par de dançarinos, até porque não gosto muito. A Teca tem a mania de guiar e ela é completamente sem ritmo. Canta junto, como se fosse afinada e soubesse a letra. Eu queria ficar em casa vendo um jogo qualquer, mas estava ali, contribuindo para a relação do casal e a reforma da Igreja. Afinal, era sempre o culpado por ficarmos os finais de semana em casa cuidando das crianças. Segui o ronco da gaita e fui pulando salão afora. Tomei várias cervejas, mesmo estando quentes, então não dava muita importância para os comentários dos outros. Tirando um ou dois casais, ninguém sabia dançar. Meus braços não davam mais a volta completa nela. Estávamos longe daquela forma. Como o tempo passa rápido e é implacável.

Na primeira, até fomos bem. Na segunda, eu já estava cansando e um casal começou a esbarrar na gente. Quando começou a terceira, eles praticamente nos atropelaram. Eu chamei a atenção, mas não gostaram muito. A Teca me pediu para não fazer fiasco e até quis parar, daí que eu fiquei. Fizemos a volta no salão dançando e nos encontramos com o outro casal de novo. Mais um esbarrão, dessa vez eu estava preparado. Eles levaram a pior. O pessoal começou a reparar e as mulheres se conheciam, embora não se gostassem muito. Nunca tinha visto o sujeito na vida. Era forte, mas não sou de levar desaforo para casa. Passamos pela nossa mesa e ela quis parar, emburrada e me repreendendo.
- Não me faz fiasco! Todo mundo nos conhece aqui!
- Eu nem queria vir. Se quiser, vou embora agora. – Sussurrei.
- Não se atreva!

Antes de sentar, enchi o copo plástico com uma cerveja quase choca e o sequei num único gole. Enxuguei o rosto ensopado de suor e percebi o outro sujeito risonho, olhando atravessado para mim. Aquilo me ferveu o sangue. Chamei minha mulher para dançar de novo, mas ela não levantou e repetiu a recomendação. Então, fui até a banda e pedi uma música. Ela não estava no repertório e eles demoraram a entender porque eu não sabia cantá-la em inglês, nem mesmo o nome direito. Só fiz o “ai ai ai”, praticamente cuspindo no ouvido do baixista. O que eu fazia ali? Por que não fiquei em casa? Quanto estaria o jogo? A fisionomia do sujeito tinha me deixado realmente irritado. Tanto ele quanto a minha mulher. Ela sabe ser irritante quando quer. Voltei até a mesa:
- Não vai dançar mesmo? Então vou tirar tua prima.

Ela fingiu não dar importância, embora no fundo odiasse quando eu chegava perto simplesmente porque a outra era uma mulher solteira, tinha melhor forma física e fama de ficar com homens casados. Eu nem gostava muito de dançar, mas aquele sujeito me deixou irritado e se ele viesse para cima de mim de novo, eu reagiria. E para desgosto total da Teca, dançava melhor com a prima. E ainda tinha uma vantagem: ela não cantava no meu ouvido.

O outro casal realmente gostava de bailar, mesmo um pouco desajeitados. Ele também tinha bebido bastante, talvez até mais. Fazia rodopios, ria alto e afastava todo mundo da frente. Eu não deixaria por isso, mesmo sendo um pouco menor. Colei a prima emprestada no meu corpo e saí dançando. Ela estava cheirosa. Nunca tinha sentido aquele perfume. Deveria ser importado. Até me empolguei como há tempos não fazia. Tinha um sorriso largo e flutuava com leveza pelo salão, ao contrário da minha parceira de anos. Com a Teca, era como dirigir um caminhão caixa seca. Eu e o dito cujo nos estranhamos mais uma vez, e agora chegamos a trocar reclamações. Segui dançando. Foi quando a banda parou e me surpreendeu. O vocalista falou:
- Nós recebemos um pedido especial e dissemos que a música não estava no nosso repertório. Porém, nosso tecladista aceitou o desafio e vai cantar essa para nós e os casaizinhos desse salão poderão dançar coladinhos.

Quando o cara começou “I Should Have known Better”, a Teca levantou e foi até nós quase correndo, pedindo licença para a prima, assumindo dali para frente. Até me surpreendeu, mas segui adiante, mesmo trocando pisadas nos pés e ouvindo o inglês terrível dela quase me deixando surdo. O desgraçado do outro casal também continuou dançando, não cansavam nunca.

No esbarrão seguinte, não nos controlamos.
- Ei, olha por onde anda – eu disse – vocês estão nos empurrando a noite inteira.
- Vocês que não sabem dançar e ficam atrapalhando quem sabe.

As mulheres tentaram apaziguar, mas nós continuamos a trocar desaforos. A banda não percebeu e quando o tecladista cantou um desafinado “I love you” eu e o sujeito começamos a trocar socos, pontapés e acabamos caindo no chão. Foi uma correria no salão. O padre ao invés de tentar apartar, subiu no palco e começou a pedir calma e falar em Deus. As mulheres gritavam feito loucas e os homens, a maioria velhos, não se atreviam a nos segurar. Como era uma festa paroquial de bairro, só havia dois seguranças na porta para não deixar ninguém entrar sem convite que demoraram a chegar. Finalmente, após eles aparecerem, outros ajudaram a terminar com a briga. O saldo foi o meu nariz quebrado, jorrando sangue e o olho dele roxo com a boca cortada. Infelizmente, para a comunidade, a festa havia acabado. Para a Teca e eu, nossa relação chegou ao limite. Mais uma vez, eu era o culpado por tudo, até por não ter usado camisinha naquela festa adolescente, como se apenas eu tivesse gerado nosso mais velho e um casamento às pressas. Deixando sonhos e planos para trás.

 

voltar para página do autor