Vida ou Dignidade?

Marta Leiria

Leigos ou doutos, não importa, todos sabemos que direitos como a vida, a dignidade e a liberdade religiosa estão entre nossos bens maiores. Parece, a um primeiro e desavisado olhar, que antes de tudo vem a vida, sobrepondo-se a qualquer outro direito consagrado na Constituição Federal. Não é bem assim. Há casos concretos de difícil solução, em que valores e princípios precisam ser sopesados para que se conclua qual deva preponderar.

Trago o caso de amiga que precisou não só aguardar na fila do SUS, mas peregrinar por longos anos em busca de hospital e equipe médica coesa disposta a realizar cirurgia cardíaca de risco sem recorrer a transfusão sanguínea. Inúmeras vezes, com a paciente já internada, algum membro da equipe se recusava a fazer a cirurgia nessas condições. E ela voltava para casa sem perspectiva concreta de quando, e se, seria submetida ao necessário procedimento cirúrgico para a cura de grave enfermidade. Trata-se de pessoa maior, capaz e que, por suas convicções religiosas, não admite a transfusão – e há médicos que realizam cirurgia fazendo uso de substâncias alternativas ao sangue.

Diante dessa situação aparentemente insolúvel, me lembrei de colega do Ministério Público que me revelou ter se arrependido de dar parecer, adotado pelo juízo, sustentando que no caso de risco de morte a transfusão deveria ser autorizada contra a vontade do paciente. Nesse caso particular a mim relatado pelo colega, a transfusão foi autorizada judicialmente. Embora tenha sobrevivido, a pessoa passou a sofrer de severa depressão, não via mais sentido na vida.

Minha amiga me explicou que receber sangue equivaleria, para ela, a ser estuprada. Acredita em ressurreição e em uma vida livre de sofrimento após a morte. Lamentavelmente foi xingada de fanática por renomado cirurgião, incapaz de compreender e, principalmente, de respeitar a visão de outro ser humano com quem não concorda. Sabiamente ela procurou um terceiro hospital. A cirurgia foi realizada. Fui visitá-la dia desses no Hospital Conceição, em Porto Alegre. Estava tão feliz por ser respeitada em sua crença, e tratada com tanta consideração por toda a equipe que realizou a cirurgia, que quase nem reparava na própria dor física. Não é à toa que a dignidade, valor espiritual e moral inerente à pessoa humana, constitui fundamento da República, prevista no primeiríssimo artigo de nossa Lei Maior, antes mesmo daqueles direitos bem conhecidos de todos nós, elencados no artigo 5º, caput: direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade.

 

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