Testemunho

Maria Avelina Fuhro Gastal

Nem sempre vivi aqui. Já percorri o mundo em peles de animais, em cascos de cavalos, no tombadilho de navios, em cadeiras de trens e em aeronaves. Nem se ocupe em tentar adivinhar minha idade, pois nem eu sei. Vivo o suficiente para já ter presenciado descobertas de novos mundos, guerras, catástrofes, casamentos e funerais. Às vezes, presencio os eventos de cima, em outras, grudada nas costuras dos sapatos.

Cheguei nesta casa há mais de cinquenta anos. Pouco tempo para mim, mas muito para eles. Vim encostada na dobra de um laço dourado, amarrado no pacote de um lindo vaso de cristal. Assim como eu, várias outras naquela época chegaram nos embrulhos de presentes. Havia um clima de encantamento. O casal nos libertava, sorria e escolhia o melhor lugar para expor o presente recebido.

Tão logo desfeito o laço que me continha, pousei na única mesa do cômodo. Era perigoso. Mãos ou panos me deslocavam, mas eu rodopiava pelo ar e voltava ao lugar. Gostava de estar ali. Durante a semana, passava o dia dormitando, mas o movimento da porta no final do dia, deslocava o ar e as cócegas me despertavam. Acompanhava o jantar improvisado, a ternura no abraço e a felicidade do reencontro. Naquela mesa descobri que eles não seriam mais dois. Muito andei na dobra daquela barriga, mas por sorte, sempre retornei à mesma casa. E isto não é comum. Sofro críticas de outras que por aqui passaram. Acusam-me de acomodada. Confesso ter me agarrado em costuras, dobras, fios ou no suor sempre com a esperança de voltar para o mesmo lugar. Não por comodismo, mas por pertencimento.

Com a chegada daquele mais um, minha vida ficou difícil. Não só eram raros os momentos de silêncio, mas, principalmente, uma fúria descomunal contra mim e minhas parceiras tomou conta do lugar. Os panos passaram a ser umedecidos, um perigo para nós. Capturam-nos com mais facilidade e nos paralisam até secarem. Nem sei como consegui permanecer. Muitas foram arremessadas no ar e plainaram para outros lugares. Precisava me manter longe dos raios de sol, delatores contumazes. Descobri a proteção nas dobras das cortinas. Preferi as próximas à parede para evitar um vento mais arrojado.

Nem sempre estive na sala. Por vezes fui arrastada para os quartos. No do casal, sentia-me constrangida. Primeiro pelo testemunho à intimidade, depois ao conflito, ou ainda, pela alternância entre os dois. Minha estrutura não é pura, mas tenho lá meus recatos. No das crianças, já duas, temia pela minha integridade. Não raro voavam almofadas, brinquedos ou sobravam pontapés e empurrões. A sala era agitada, mas segura. Ouvia conversas, participava de brincadeiras. As conversas diminuíram com a chegada dela. Quando ela se abria em imagem e sons, todos perdiam a voz e a fitavam com atenção. Os que não calavam eram interpelados por um psiu. Tentei me abrigar nela para estar perto deles, mas não aguentei. Era barulhenta e muito quente.

Em alguns períodos, tudo silenciava. Se não houvesse vento, ficávamos semanas no mesmo lugar, às vezes esmagadas pelas recém-chegadas. Em uma única vez não permaneci. Na agitação que precedia aquele período, acabei presa à costura de uma mala. Vi como aproveitavam as férias, mas não tive sossego. Por temor de ficar, agarrei-me à costura para garantir minha volta. Não relaxei.

Percebi a mudanças dos móveis, na rotina da casa, no crescimento das crianças, na chegada do aspirador de pó. Momento de puro terror. Nas pessoas identifiquei o tempo. A casa mudou, seus corpos curvaram, seus rostos e suas vidas se transformaram. Acompanhei conflitos, amores, chegadas e partidas.

Em casa, de novo, só nós três. Ele se foi de repente. Os filhos logo chegaram. Percebi nela a maior dor. Aproveitei a agitação para pousar na gola de seu vestido preto. Acompanhei-a durante todo o velório e retornei com ela para casa. Escapei das lágrimas e dos abraços agarrando-me na echarpe. Deixei me levar para o quarto para velar seu sono. Ouvi seu pranto e fiz parceria com a sua insônia. Há dias o quarto não recebe o sol. Começo a sentir sobre mim o peso daquelas que vão se depositando sem ninguém para espantá-las. Estou como ela, sem forças para um movimento. Estarei com ela para sempre, seja soterrada pela dor ou libertada pela vontade de voltar a viver.

 

voltar para página do autor