Histórias de A a Z

Maria Avelina Fuhro Gastal

Nem a proximidade com a primavera me trazia alívio naqueles dias de setembro.

Sobrevivi aos meus pais e irmão. Cabia a mim, sozinha, desmanchar o apartamento onde minha mãe morou nos últimos três anos de vida.

Usar a chave, mexer nas suas gavetas, papéis, roupas e armários, selecionar memórias, objetos e classificar o que seria doado, guardado ou distribuído entre os familiares fazia com que me sentisse invasora. Minha mãe nunca perdeu a lucidez. Foi uma mulher independente e forte. E ali estava eu, remexendo a vida dela.

Fui do amplo ao privado, do rotineiro ao pessoal. Por fim, sobrou o criado-mudo. O mesmo desde o casamento de meus pais em 1953. Duas gavetas e duas prateleiras. Comecei pelas prateleiras. A chance de encontrar segredos era menor. Passei ilesa. Livros e um cofrinho com seus anéis, correntes e pingentes estavam guardados sem nenhum segredo e, junto com eles, as tampinhas das boias que usávamos quando crianças. Nunca pensei que as mantinha no mesmo lugar. Na gaveta de baixo, uma caixa com as cartas que ela e meu pai trocaram ao longo da vida. Li a primeira, a segunda, desisti na terceira. Covardemente fechei a caixa e a levei para minha casa. Ainda está lá, fechada. Na gaveta de cima, uma foto da minha avó, uma do meu pai e outra do meu irmão, ainda criança. Junto a elas, uma caderneta de telefones.

A caderneta mede quinze por dez centímetros. Tem capa de couro marrom, imitando uma pele de cobra e a letra D do nome dela em dourado. Na primeira página, uma dedicatória de uma amiga no ano de 1970. Naquela caderneta encontrei nossa história. Usada até os seus últimos dias, minha mãe elaborou um sistema de marcação e apontamentos de telefones que, depois de decifrado, trazia informações sobre as nossas vidas e de todos que passaram por elas e tiveram seus telefones ali anotados.

Não sei se já decodifiquei tudo, mas até agora percebi que uma cruz ao lado do nome significa óbito, um nome tachado em um casal, revela uma separação; se há um asterisco ao lado deste nome, encontramos na letra correspondente o novo telefone, sinal de que permaneceu nas relações de amizade, se não há o asterisco, foi banido, provavelmente ela tomou partido no rompimento. Nas letras correspondentes a cada nome de filhos ou netos há uma listagem com os amigos. Enquanto éramos adolescentes, encontramos entre parênteses os nomes dos pais, depois de adultos os nomes dos cônjuges. Uma amiga minha, com quatro casamentos, mereceu uma atualização à parte devido ao excesso de rasuras. Na letra M, todos os médicos e dentistas, desde o pediatra, otorrino e ortodontista de meus filhos e sobrinhos, até os oncologistas do meu pai e irmão, e um número sem fim de médicos que a acompanharam nos últimos anos.

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Escrevi esse texto poucos meses após a morte de minha mãe. Quase quatro anos já se passaram. Hoje, além de saudades, tenho um sentimento de alívio por ter feito as pazes com a mãe que tive.

Nossa relação não foi fácil. Afinal, éramos mãe e filha. Nem sempre fui a filha que ela desejou, nem sempre ela foi a mãe que eu queria ou precisava. Mas, em nenhum momento, deixei de ter mãe. Às vezes controladora, noutras sedutora, muitas preconceituosa. O que eu não percebia era que esse era o jeito dela de mostrar preocupação ou afeto. Sem dúvida, a família era o centro da vida dela. O problema era quando ela tentava impor a visão que tinha de família a todos nós. Ou quando tentava impor qualquer visão sobre qualquer aspecto da vida em todos nós.

Quando criança e adolescente eu tinha um caderno com o título Tudo que minha mãe faz e não farei com meus filhos. Não sei que fim levou, mas devo ter repetido muito do que ali estava escrito. E fiz muita coisa diferente. Quais anotações meus filhos fariam em um caderno como esse? Se vejo neles coisas minhas, vejo, também, coisas muito melhores. Hoje eu faria um outro caderno, Tudo que minha mãe foi como avó e também quero ser com meus netos.

Não é fácil ser mãe, não é fácil ser filho, mas vale cada momento. E mesmo depois da morte, continuamos descobrindo em nós espaços para reescrever nossa história e a relação que tivemos com quem nos amou e amamos da forma como nos era possível.

Não li as cartas trocadas entre meus pais e a caderneta, sem nenhuma utilidade para o fim a que se destinava, permanece comigo

 

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