Ler como um escritor

Jacira Fagundes


LER COMO UM ESCRITOR
Trecho do artigo “Ler como um escritor” – Guia de Produção Textual/ PUC -


Estamos casualmente lendo, e novamente encontramo-nos parando para reler uma passagem. Na verdade, entendemos muito bem. Voltamos porque alguma coisa naquele trecho foi especialmente bem colocada, porque respondemos ao toque do artista. É algo que nós mesmos gostaríamos de fazer e, ao mesmo tempo, algo que acreditamos não estar fora de nosso alcance. Estivemos lendo como um escritor, como um membro do clube.

Tudo o que o aprendiz gostaria de grafar, o autor grafa. Tudo o que o aprendiz gostaria de pontuar, o autor pontua. Cada nuança de expressão, cada recurso sintático relevante, cada estilo de frase, o autor e o aprendiz escrevem juntos. Passo a passo, uma coisa por vez, mas um número incrível de coisas.

Por onde se dá este processo de entendimento entre autor e escritor aprendiz?

Para caracterizar este processo de ler como um escritor, que estou tentando descrever, é útil fazer referência à figura legendária de Sherlock Holmes, para quem o bom investigador deveria ter duas grandes qualidades:

Acurado senso de observação
Grande conhecimento em muitas áreas

O perfil de um investigador segundo Sherlock Holmes ilustra perfeitamente o processo de aperfeiçoamento da competência textual e a própria habilidade de expressão escrita. Não é demais repetir que tal aprimoramento ou habilidade não se explica, não se processa pelo estudo de regras gramaticais, pela leitura de manuais de redação, nos bancos escolares onde se realizam exercícios de redação. Explica-se pela assimilação. Segundo o crítico francês Albalat, talento nada mais é do que assimilação. Assimilação que decorre do ler, do saber ler, do monitorar a própria leitura, do surpreender-se, do admirar-se diante do texto, do observar os seus recursos, o que leva a escrever o que se lê, a internalizar recursos de expressão, a imitar, a recriar, a encontrar nosso estilo.

O que importa é ler com olhos de detetive, cujo método "se baseia na observação". Observação de detalhes, de aspectos que podem passar despercebidos, observação da forma linguística ... e não apenas preocupação em decodificar o conteúdo.

Por outro lado, o conhecimento que deve abarrotar o cérebro de um detetive-escritor diz respeito à leitura, ao conhecimento de textos. Quem escreve não escreve no vazio, pois um texto não surge do nada. Nasce de/em outros textos. Pode-se dizer que escrever é a habilidade de aproveitar criticamente e criativamente outros materiais interdiscursivos, outros textos.

Como e onde exercitar tais habilidades – de observação e de ampliação do conhecimento?

O que acontece quando estamos lendo?

Uma das características fundamentais do processo de leitura é a capacidade que o leitor possui de avaliar, de monitorar a qualidade da compreensão do que está lendo. O leitor, em determinado momento de sua leitura, volta-se para si mesmo e se concentra não no conteúdo, mas no processo que conscientemente utiliza para chegar ao conteúdo. É o fenômeno da meta cognição.

Meta cognição seria o conjunto de estratégias de leitura que se caracteriza pelo "controle planejado e deliberado das atividades que levam à compreensão".

A meta cognição, no entanto, não se refere apenas ao monitoramento na compreensão do conteúdo. Estamos também envolvidos num processo de meta cognição quando analisamos a forma linguística do texto. Isso se dá quando lemos como um escritor. Aqui também o leitor volta-se para si mesmo e avalia, analisa a forma ou reflete sobre ela.

A ideia de que nenhum conhecimento é construído pela pessoa sozinha, mas sim em parceria com os outros, que são os mediadores, é própria da psicologia sócio construtivista de Vygotsky, teoria que traz em seu bojo a concepção de que todo o ser humano se constitui como tal mediante as relações que estabelece com os outros.

Essa ideia de mediação está claramente posta em Frank Smith: o escritor se constitui como tal, se constrói mediante as relações que estabelece com os textos de outros escritores.

É possível dimensionar este controle planejado e deliberado das atividades que levam à compreensão do texto que estamos lendo? De que maneira?
O talento nada mais é do que assimilação
Concordam? Até que ponto?
A admiração conduz à imitação, e a imitação é um meio de assimilar as belezas alheias
Concordam? Até que ponto?

O fetichismo atual da "originalidade" e da "criatividade" inibe a prática da imitação. Quer que os aprendizes criem a partir do nada, ou da pura linguagem da mídia. O máximo que eles conseguem é produzir criativamente banalidades padronizadas.
Ninguém chega à originalidade sem ter dominado a técnica da imitação. Imitar não vai tornar você um idiota servil, primeiro porque nenhum idiota servil se eleva à altura de poder imitar os grandes. Segundo porque, imitando um, depois outro e outro e outro mais, você não ficará parecido com nenhum deles. Mas, compondo com o que aprendeu deles, o seu arsenal pessoal de modos de dizer, acabará no fim das contas sendo você mesmo, apenas potencializado e enobrecido pelas armas que adquiriu.
É nesse e só nesse sentido que, lendo, se aprende a escrever. É um ler que supõe:

.a busca seletiva da unidade por trás da variedade
.o aprendizado pela imitação ativa
.a constituição do repertório pessoal em permanente acréscimo e desenvolvimento.









 

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