A última gota

Maria Avelina Fuhro Gastal

Texto publicado na coletânea Caleidoscópio – 2018


Pim, pim, pim...

Rosaura já não sabe viver sem este som. No início, a irritava. Reclamou com o filho quando veio visitá-la pela última vez. Quando mesmo foi isso? Lembra que foi no tempo em que ainda mostrava algum esmero em se cuidar, apenas trocara o salto por sapatilhas mais confortáveis.

O filho, muito ocupado, garantiu que mandaria um hidráulico. Não mandou. Ela o lembrou nos telefonemas que se seguiram à visita. Depois desistiu. O ritmo do som lhe fazia companhia. Passou a brincar com ele.

Puxou uma cadeira, pegou um copo, colocou-o bem abaixo dos pingos e distraiu-se por algumas horas marcando o tempo que ele levaria para transbordar. Nem viu a tarde passar. Repetiu a brincadeira por uma sucessão de dias, já nem sabe quantos. Tem sido assim, os dias e as horas parecem sempre os mesmos.

Trocou a brincadeira na mesma época em que mudou de roupa. Não via mais sentido em se apertar em roupas sociais. Optou pelos agasalhos que usara na academia, quando ainda acreditava que o esforço físico lhe traria recompensas. Restaram de lá uma dor no joelho e um desconforto na lombar, além dos abrigos surrados.

Substituiu o copo por uma jarra. Precisou ampliar seu tempo frente à pia. Assim, tão logo acordava, sentava-se na cadeira que já não saía mais daquele lugar, e passava o dia acompanhando os pingos. Passou a dormir menos. Tinha, agora, um sentido para estar acordada. Precisava controlar o tempo observando os pingos.

Trocou o sofá da sala pela cadeira, a TV pelos pingos, o sono pela distração e o resto da casa pela cozinha. Tinha ali tudo o que necessitava. E cada vez precisava de menos. Antes de deitar, esvaziava o recipiente, abria o ralo, despedia-se dos pingos. Passou a sentir que os estava perdendo. Mudou de tática. Começou a manter o ralo fechado, só liberando os pingos acumulados na manhã seguinte, quando já estivesse pronta para acompanhar os que estavam por vir.

Foi nessa época que simplificou sua vida. Desistiu do abrigo. Um chambre bastava. Liberou os pés para as pantufas e acalmou a lombar com uma almofada recuperada na sala já sem uso. Aliviou o filho, inventando compromissos para que ele não aparecesse. Ele não insistiu. Agradeceu a si mesma por ter feito dele um homem tão obediente. Há tempos não vinha e também pouco telefonava. Ela tinha certeza que ele não queria incomodá-la.

Um dia desistiu da jarra. Tentou um balde, mas a torneira não o permitia ficar em equilíbrio. Desistiu dos subterfúgios. Encarou a pia. Agora seria entre elas. Pela última vez liberou a água acumulada na noite, tampou o ralo e, numa postura de duelo, a desafiou ─ Quanto tempo precisarás para te encheres? E esperou. Não seria derrotada por uma pia.
As horas se sucederam, os dias se acumularam. Nas poucas vezes que se afastou para usar o banheiro, deixou a jarra para não perder nenhum pingo. Voltava e, com prazer, virava os poucos pingos acumulados na poça que já se formava. Seus cochilos passaram a ser mais rápidos.

Há dez dias percebeu que gota a gota a diferença não era muita, só com o passar do tempo dava para notar o acúmulo. Relaxou. Voltou a dormir na cama, mas sem jamais liberar o ralo.

Hoje lamentou não ter presenciado quando a pia transbordou. Trocou a pantufa por um chinelo de borracha, tirou o telefone do gancho, voltou para a cozinha e lançou-se um novo desafio: quanto tempo levará para alguém perceber que corro o risco de me afogar? Sentou e deixou-se esperar.

 

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