(Des)encontros

Claudia Paixão Etchepare

Quem já teve muitas vidas tem medo de dobrar a esquina. Aquela pessoa do passado pode simplesmente se materializar na sua frente. O risco que corremos de encontrá-la na fila do cinema ou na mesa bem ao lado no restaurante é real e subjaz a todos os nossos passos. Em uma fração de tempo, o abismo da memória se abre e ilumina aquele cantinho escuro, esquecido. Tu lanças mão de ferramentas diplomáticas e gerencias o momento com melhor eficácia que consegues.

Por fora. Porque, por dentro, algo de nostálgico te faz companhia, por algum tempo. Os encontros mais viscerais são aqueles com quem já se compartilhou certo grau de intimidade. Alguns doem no estômago ou no coração. Outros, deixam a pergunta - como pude? - martelando na cabeça.

Há encontros que simplesmente suscitam recordações de estórias divertidas ou curiosas. Como se víssemos uma foto em um álbum, só que com a vantagem de poder falar. Vantagem ou desvantagem, porque em certas ocasiões falar com alguém do passado pode simplesmente destruir a imagem cor de rosa que tínhamos desta pessoa. O filtro de nossa memória geralmente privilegia o otimismo e minimiza as imperfeições. Tipo quando o cara morre e a gente só lembra das coisas boas. Há também os encontros que te colocam em uma saia justa quando a pessoa diz o teu nome claramente, te pergunta sobre fatos bastante íntimos da tua vida e tu não consegues identificar quem é. Tu dás respostas lacônicas enquanto a mente vasculha possibilidades. E sempre caímos na armadilha de ficar constrangidos em dizer: desculpe, não estou me lembrando bem de onde nos conhecemos. Os de mais de 60 anos de idade podem ainda emendar: ando tão esquecido ultimamente.

Várias vezes cumprimentei o caixa do banco na rua sem ter a mínima ideia de onde o conhecia. E a atendente da farmácia que perguntou se minha filha tinha melhorado da tosse? Honestamente, estas pessoas tinham que andar na rua com crachá. E a coisa engrossa quando se muda de bairro mais de uma vez, se casa mais de uma vez ou se mora no exterior por um tempo. E a situação de te deparar com uma destas criaturas fantasmagóricas no exterior? Dobrava eu uma esquina, bem bela, sem lenço e sem documento, usufruindo de um período de afastamento voluntário do mundo quando esbarro nessa pessoa. Ela inicia uma verborragia sobre estórias que vivemos trazendo à tona sentimentos que definitivamente não estavam no meu script. Aceitei tomar um café para desvencilhar-me logo, e consegui. Mas o meu processo emocional foi rompido e levei um tempo para me estabilizar. Convenhamos! A pessoa vai fazer um momento de reclusão terapêutica, quietinha no exterior, sem incomodar ninguém, e um fantasma do passado te encontra lá?!

O risco de encontros fortuitos é diretamente proporcional ao teu estilo de vida. Por isso, é aconselhável dar uma boa espiada antes de dobrar a esquina. Qualquer esquina. A do bairro, da cidade, do mundo!- depende muito da área geográfica que tu te esparramas. Não esqueça: a fatalidade é um bicho que se esgueira furtivamente.

A verdade é que carregamos dentro de nós todas as pessoas que conhecemos nesta vida, as amadas, as desamadas e até mesmo as que achamos que esquecemos. Extirpar uma pessoa da memória é inviável.

Adoro estes devaneios malucos que me assaltam quando estou dirigindo. Especialmente em um dia de sol de inverno, como este. Pelo jeito o supermercado está cheio hoje, a julgar pelo número de carros disputando vagas no estacionamento. Claro, hoje é sábado, dia infernal de super. Ih, olha lá! Um destes seres do passado entrando no super de mãos dadas com uma criança. Parece com o vizinho da praia, ou será que é.... não, não pode ser! Será?!

Definitivamente, é melhor eu deixar as compras para outro dia.


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