A dívida

Bruna Agra Tessuto

Depois daquele dia, Selma não foi mais vista nos corredores, nem nas salas de aula, nem nos recreios. A sua Mariana não estava mais entre as crianças barulhentas daquele colégio. A sua Mariana era silêncio, dor e vazio. Deixou de viver no fim de uma manhã de outubro, aos sete anos de idade.

Sem perceber, Selma também foi sumindo. Foi, aos poucos, parando de comparecer aos almoços de família e às reuniões de amigos. Sua única companhia era a ausência da filha. Quando questionado, o marido dizia que ela precisava de tempo para assimilar e reagir.

Mas a verdade é que ela nunca se recuperou. Voltou a ver algum sentido na vida anos depois, quando sua irmã mais nova teve um bebê. Como se fosse um teste, uma segunda chance, acompanhou o sobrinho completar sete anos e, embora não sem dor, percebeu que já podia encarar o mundo infantil novamente. Voltou, então, ao que um dia fora sua rotina.

A cada primeiro dia de aula, pedia para que os alunos levassem uma fotografia de sua família para compor o mural da sala. Todas eram coladas ao redor da pose de Mariana.
- Quando vamos conhecer a Mari? – os alunos perguntavam empolgados.
- Em breve. Ela está ansiosa por isso – respondia imersa em sua fantasia.
Todo início de ano o processo se repetia, até o dia em que Sofia, a menina de voz aguda e cabelos enrolados, trouxe a sua foto. Ela mostrava o sorriso de Suzete, mãe da menina. Um soco no estômago de Selma.

- Sofia, tenho como hábito conhecer os pais dos alunos. Será que a sua mãe poderia vir conversar comigo? – perguntou após dias.

- Minha mãe trabalha o dia todo, ela perguntou se você pode conversar com ela lá na loja em que ela trabalha – veio Sofia falando agudamente no dia seguinte.
Ao amanhecer da data combinada, Selma levantou da cama sem ter dormido. Não tomou café. Era um dia atípico e esperado. Pegou sua bolsa e colocou tudo o que iria precisar, incluindo seus calmantes. Passou a aula inteira sem conseguir olhar para Sofia e tentando desviar os olhos da fotografia de Suzete.
Ao término do que pareceu ser a aula mais longa de sua vida, Selma ficou aguardando Sofia terminar de guardar seu material. A menina logo veio saltitando e, de mãos dadas com a professora, saiu da sala em direção ao trabalho de sua mãe.
Selma sentia suas mãos suando e fazia força para conseguir respirar. Ao entrarem na loja, Sofia saiu correndo e abraçou sua mãe, como costumava fazer diariamente. Em silêncio, Selma abriu a bolsa, pegou o revólver e apontou para seu alvo. Quando Suzete percebeu, já era tarde. A sua Sofia era silêncio, dor e vazio. Deixou de viver no fim de uma manhã de março, aos sete anos de idade.

 

voltar para página do autor