Beth

Neusa Demartini

Subia a Borges de Medeiros em direção à Salgado Filho, na calçada coberta pelas marquises dos antigos edifícios da minha cidade. Ia caminhando devagar, tentando me equilibrar entre tantos camelôs.

Meus Deuses, que cidade é esta onde o comércio informal está dobrando a cada meio dia, e o comércio tradicional desaparecendo a cada dia? Abarrotados, empurrando-se e empurrando os transeuntes, vendedores de cigarros contrabandeados, frutas e legumes a preço de dois por um, roupas, bolsas e sapatos fakes de grifes, óculos de grau e de sol, capas películas e suportes para celulares...

Fico imaginando quem está por trás disto. Certamente não são os haitianos, nem os angolanos ou senegaleses que chegam a multiplicar-se

de um dia para outro. Pouco tempo para se organizarem. Deve ter um distribuidor já com conhecimento do metier e com boa logística.

Pois, no meio deste tsunami, concentrada que estou para não esbarrar em alguém ou pisar num dos panos estendidos para receber as mercadorias, ouço uma voz conhecida:

-Professora!

Bom, pra quem escutou ser chamada de professora durante mais de quarenta anos, é claro que parei para ver se conseguia ver quem chamava. E se era a mim que chamavam.

E deparei com a Beth.

Beth, minha amiga moradora de rua. Sim, somos amigas há dois anos.

Beth, que morava na Gerônimo Coelho, na calçada, debaixo da marquise do INSS.

Beth um dia, quando eu passava por ali, me olhou de soslaio. Tirou a bomba de chimarrão da boca, pitou o cigarro, soltou a fumaça e se dirigiu a mim:

- A Senhora é professora, não é?

- Sim, sou. Como sabe?

- Pelo jeito.

- Jeito??

Tragou fundo, me apontou com o cigarro entre os dedos:

- Sim. Delicada e decidida.

Dali em diante, toda vez que passava por ela, sentada em seus caixotes cobertos por um plástico preto, parava para bater um papinho rápido. Beth pouco falava de si. Soube que era de Cruz Alta. E que havia cursado até a quinta série. E nada mais. Mas ela sabia muito de mim, de me observar, de ler meu jeito de falar com ela, de meu modo de sorrir. Sabia, pelo meu passo, quando eu tinha pressa ou quando estava nervosa ou tranquila. Lia preocupação ou relaxamento, em meu rosto.

Mas ela era sempre a mesma. Chimarrão em uma mão e cigarro em outra.

Um dia sumiu. No dia anterior tinha perguntado pelo Pedro. Assim mesmo, pelo nome dele. Acompanhou a gravidez da minha filha. Sabia do primeiro sorriso dele. Dos seus primeiros dentinhos. De quando começou a andar e mexer nos controles remotos da casa. E me disse, em tom de sábia e conhecedora de tecnologia de ponta:

- As crianças, hoje, já vêm com chip. Os japoneses que aperfeiçoaram.

E perdi a Beth para os donos dos espaços ocupados por moradores de ruas. Gangsters dominam as vagas. Soube, por Beth, que moradores de rua pagam a alguns que tem o poder sobre as ruas. Que há traficantes, prostitutas, gente ruim junto com gente boa. Que há uma reprodução da sociedade em que vivemos, uns explorando os outros. Eu não há solidariedade entre as castas.

Aí então, ouço a Beth quando já estou passando dela mais ou menos uns quatro metros superlotados de gente. Olho para trás. Lá está ela, escondendo-se da chuva, enroscada em um cobertor imundo. Apenas reconheço seu rosto. Dou-lhe um sorriso, tentando voltar, e grito:

-Beth! Tudo bem? Ela enrola-se totalmente no cobertor, escondendo-se de mim. E eu sigo, com medo de ofender sua dignidade. Mas infeliz por ter dito “Tudo bem?”. Não, talvez ela esteja melhor do que eu, que não tive presença de espírito e perguntar, mesmo que de longe: “Precisando alguma coisa, minha amiga?”.

 

voltar para página do autor