O inusitado e insólito noiva da Duque

Neusa Demartini

Bembão entra e sai dos conteinêrs de lixo como quem entra na cozinha e depois no quarto, passando pelo banheiro. Às vezes some, e ninguém sabe ninguém viu. Nem ele mesmo se sabe ou se viu. Não tem nome nem identidade e também ninguém por ele. Não fala, não socializa, não pede e não dá um bom dia quanto mais uma boa noite! Apenas se diz Bembão, pra si mesmo. Um bem bão bem alegre, como um contentamento infantil diante de um saco de pipoca com chocolate doce.

Este ser come restos de frutas da fruteira da esquina, sobras de comida da lanchonete do meio da quadra, e recolhe as cartas comerciais que os Correios e Telégrafos jogam no lixo quando passa do tempo dos destinatários virem pegar. Encosta -as pertinho dos olhos, uma a uma e as empilha por tamanho, em um trabalho de paciência que lhe consome quase toda a tarde. Depois as leva para outro contêiner e ali as deposita, uma a uma também, como se estivesse distribuindo-as nos escaninhos de outros tantos moradores. Seus sons vocais são apenas dois: bem bão!

Bem bão! quando come o que juntou, e um ziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziziz interminável, que emite quando não está no primeiro som. Monocórdica, repetitiva ad infinitun, um instrumento primitivo que precisa ouvir para se dar conta que é um ser vivo, um homem, que um dia foi um recém nascido, um bebê, uma criança que mamou, engatinhou, comeu papinha e fez xixi e cocô no penico. Quando se perdeu na sua história? Ninguém que a acompanhou, sequer um dia, passou por ali para vê-lo.

Entra e sai do contêiner com uma destreza de dar inveja a cusco magro ou gato esfomeado. Acompanhado da cantoria como se fosse uma cigarra anunciando o verão faz o seu próprio ritmo, intercalado pelo “Bem Bão”, “zizizizi”, “bem bão”, “zizizizi”... como uma canção de ninar para si mesmo, para acalmá-lo e recordar-lhe, quem sabe, o aconchego de um colo de mãe.

Na madrugada quente acordo pensando ter sonhado, mas não. Zizizizizi pela noite! Zizizizizi fora de hora! Mais alto de volume! ZIZIZIZIZIZIZI pra toda a Duque ouvir! Zizizizi que subia até o décimo segundo andar e que me chamava para ver, não somente ouvir! E entre um e outro, os bem bão, bem bão, bem bão!!! Cada vez mais altos e felizes, e frenéticos, e como fogos de artifício rasgando o silêncio da rua adormecida que acordava e ia para as janelas.

Inusitado, insólito, vestido de noiva, Bembão lentamente desfilava alegre, na direção da Catedral, como se estivesse sendo aguardado por dezenas de convidados que o saudavam, também felizes. Ia iluminado pela luzes noturnas, acompanhado de sua felicidade em direção ao altar e de sua marcha nupcial.

E lá ia, com a cabeça adornada pela cortina de renda branca que eu jogara fora e o zelador colocara no contêiner para descarte. Uma grinalda e véu com dois metros e oitenta de cauda (me lembrei das medidas) desfilando enquanto a cidade dormia. Como num sonho coletivo, icônico, uma sílfide voava delicada como as mariposas que se juntavam ao redor das luzes.

Segui-o com meu olhar enternecido até quando, acocorando-se nos degraus da Catedral, adormeceu. De manhã, um mosquiteiro protegia-o dos insetos.

 

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