O carcinoma, a culpa, o medo

Claudia Paixão Etchepare

O CARCINOMA, A CULPA, O MEDO

O meu encontro com o imponderável veio no diagnóstico de uma doença.

Aquela indizível, temida por todos por muitas por muitas décadas, mas que, felizmente, me atingiu em uma época em que a medicina já dissipa as trevas que uma vez envolviam o câncer. O domínio de métodos eficazes para extirpá-lo já é uma realidade. Eficazes, mas rudimentares. Sessões de quimioterapia e radioterapia são bárbaras, convenhamos, mas agradeço todos os dias por existirem.

C-A-R-C-I-N-O-M-A , escrito com todas as letras em um destes papéis de resultado de exames laboratoriais – sem pompa nem circunstância. Atestava o resultado da biópsia que eu tinha um tumor maligno localizado na minha amidala esquerda: carcinoma epitelial pouco diferenciado de orofaringe. Assim iniciou-se um ano surpreendente. Foram sete meses física e psicologicamente envolvida com o tratamento e mais o período de um ano dedicados à morosa fase da convalescença.

Sempre me achei muito bem resolvida e, portanto, fora do risco das mulheres que têm câncer, engolidas por mágoas e rancores, inaptas para tratar suas mazelas. Certamente este perfil não se aplicava à minha pessoa.

Como passei, então, a ser mais um número das estatísticas frias das doenças hediondas? Cheguei a cogitar um erro no resultado da biópsia.

Havia um agravante que contribuía veladamente ao meu estado de alerta: minha mãe tinha falecido de câncer fazia dezesseis anos, detectado inicialmente no intestino, mas, infelizmente, com metástases que foram se apresentando no decorrer dos quatro anos subsequentes. Ela ainda teve uma sobrevida – não gosto deste termo usado pela medicina, vida é vida – digna e ativa, desfrutando de viagens, de eventos culturais e reuniões divertidas em família, como ela gostava. Veio a falecer aos sessenta e seis anos de idade, uma semana antes de completar sessenta e sete.

Foram anos de ansiedade e tristeza interior, de despedida silenciosa a cada encontro. A sua coragem e os arroubos de audácia que impingia em tudo que lhe rodeava me inspiram até hoje, assim como a sua beleza.

É natural que a experiência de ter perdido minha mãe acometida de câncer tenha criado em mim um senso mais ampliado de alerta. No entanto, buscando ajuda adequada, entendi que cada caso é único dentro do universo do seu diagnóstico e, principalmente, dentro do contexto clínico e da contingência de recursos disponíveis. Esse entendimento ajudou-me a dimensionar melhor os fatos.

Os sobressaltos apequenaram-se e as grandes, gordas e um tanto indigestas melancias foram se acomodando no andar da carruagem.

Um estudo da Universidade Johns Hopkings, nos Estados Unidos, demonstra que dois terços dos casos de câncer são resultado de uma loteria no processo de divisão das células-tronco. Os pesquisadores dizem que a causa da maioria dos tipos de câncer começa por acaso e independe do estilo de vida das pessoas. O estudo também informa que uma parcela muito pequena dos tumores malignos é considerada hereditária.

Era isso: eu tinha sido contemplada pela loteria do câncer.

Mas no fundo, no fundo, eu sabia que eu não daria por encerrado o entendimento sobre o caso com afirmação tão simplista e taxativa. Cobrava-me uma ponderação razoável para explicar o que estava me acontecendo. Alguma parcela de culpa deveria ser imputada à minha pessoa, algo errado com meus pensamentos ou com a minha conduta.

Algumas pessoas passam pela vida sem conhecer o imponderável. Sortudos? Protegidos por um seguro plus no plano divino enquanto eu tenho o pacote básico? Talvez. But there are more things in heaven and earth than are dreamt of in your philosophy, há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia, como diz “Shakes”.

Tenho especial predileção por raciocínios metafóricos e filosóficos, mas confesso que não cheguei a lugar nenhum com minhas elucubrações mentais. Na verdade, abri espaço fértil para sentimentos antagônicos. De um lado, um ser

diabólico sussurrava em voz áspera ao meu ouvido: cometeste erros e agora tens o que mereces. E do outro lado, uma figura angelical soprava em voz doce: estás tendo a oportunidade de uma experiência renovadora.

Sem muito saber em qual criatura acreditar – minhas crenças já se encontravam amotinadas e minhas certezas subvertidas, a essa altura – , um pensamento recorrente me invadiu: tem de haver um propósito para tudo isso.

E então lembrei-me de uma interessante teoria de Steve Jobs sobre conectar os pontos . Diz ele que algumas coisas que fazemos ou que nos acontecem na vida são como pontos soltos, encapsulados em si mesmos, que não se conectam com a nossa teia de vida daquele momento. Não vemos uma razão funcional ou útil para eles, aparentemente. Pode ser a escolha de fazer um curso que não está em nada relacionado com a nossa atividade profissional, um encantamento inusitado com algo que atravessa novo caminho, um rompimento que quebre o fluxo originalmente planejado. Alguns viram memórias que queremos apagar.

Mais tarde, no entanto, ao olharmos para trás, em uma perspectiva global e mais madura, conseguimos traçar uma linha conectando estes pontos desencarrilhados e entendemos, surpreendentemente, como eles tiveram influência na trajetória que nos trouxe até onde estamos. E tudo faz sentido. Transcrevo abaixo um pequeno trecho do seu discurso dirigido aos formandos da Universidade Stanford em 2005:

“You can’t connect the dots looking forward you can only connect them looking backwards. So you have to trust that the dots will somehow connect in your future. You have to trust in something: your gut, destiny, life, karma, whatever. (...) This approach has never let me down, and it has made all the difference in my life”.

Traduzindo livremente:

“Você não pode conectar os pontos olhando para a frente, você só pode conectá-los olhando para trás. Então você tem que confiar que os pontos de alguma forma irão se conectar em seu futuro. Você tem que confiar em uma coisa: sua intuição, destino, vida, carma, qualquer coisa. (...) essa abordagem nunca me decepcionou, e isso fez toda a diferença na minha vida”.

Todos temos esses pontos. É só prestar mais atenção no percurso de nossas vidas.

Uma amiga andava desasada pelas ruas de Boston, após nada ter dado certo em relação a uma proposta de emprego naquela cidade. Eis que fica sabendo de um interessante retiro de yoga ali perto. Em um impulso, resolve testar a experiência. Assim, em um piscar de olhos, encontrou-se em meio a sessões de yoga, palestras, opções de refeições orgânicas, vegetarianas ou veganas. E com a tarefa que lhe foi atribuída de varrer o chão do refeitório! É claro que me lembrei da cena do livro Eat, pray and love, da Elisabeth Gilbert, quando ela me contou.

Não sei dizer a conexão e nem o impacto que esta experiência causou (ou causará) na vida da minha amiga, mas desconfio que esse seja um destes pontos soltos que o Steve mencionou. Quanto a mim, eu estava obviamente vivendo um ponto completamente descarrilhado, e não pude deixar de pensar que eu bem preferia o ponto que tocou à minha amiga.

A teoria de Steve é deveras interessante, mas, naquele momento em particular, o meu ânimo não estava muito para charadas, por assim dizer, e a ideia de sair a procurar pontos descarrilhados e conectá-los não me entusiasmou muito.

Dava-me conta do rigor do momento ao ver o semblante circunspecto dos médicos. Nenhum me disse: “isso não é nada”.

Juro que eu tinha esperança de ouvir isso.

Na fase aguda do processo de investigação, quando me viraram do avesso buscando metástases e examinado minha condição clínica, cheguei a deixar instruções claras para a minha filha e meu marido, se a coisa evoluísse para um quadro trágico. Repeti exaustivamente para a minha filha, 32 anos, certas instruções, às quais ela pacientemente reagia me olhando com seu olhos expressivos e sábios dizendo: “Mãe, relaxa. Vai dar tudo certo. Tu vais tirar de letra tudo isso”.

Tive a sorte de ter minha filha, que na época tinha uma vida estilo globe-trotter, aqui perto de mim nesse momento delicado. Providência divina? Who knows.

Refletindo sobre a sua resposta, pensei: é verdade, vou relaxar. Se o pior estiver por vir ele ainda me dará tempo hábil para planejar os passos finais e tudo vai dar certo.

Meu marido ouviu minhas instruções sobre como queria todos os trâmites do pré e pós, viesse o pior a acontecer. Ouviu respeitosamente, mas sem perder a piada quando encaixava, com seu humor refinado. Foi bem difícil para a minha enteada, 23 anos, absorver a notícia. Entre desespero e muitas lágrimas, ela colocou o Buda na minha mesa de cabeceira para me proteger. Tínhamos comprado um pequeno Buda especialmente para ela no Floating Market, perto de Bangkok, uma barganha dura e divertida, típica da região: a vendedora dizia insistentemente com um sotaque inglês-tailandês, insuportável para meus ouvidos: “You happy, me happy!”; acredito ser uma versão tailandesa do conceito win-win nas negociações.

Após a rebeldia de não ter encontrado uma explicação plausível, após furacões revolverem minhas entranhas, a constatação de que tinha desfrutado de uma vida muito boa e intensa – às vezes me sinto como se tivesse vivido várias vidas em uma – me trouxe a bonança.

Comecei a flertar com a ideia da finitude.

Mediante a possibilidade de um sofrimento atroz, um processo que desfiguraria a minha essência e traria momentos de amargura e martírio aos meus entes queridos, ela, a finitude, não mais se apresentou com sua face carrasca, mas sim com a face de libertação, de salvação. O temor da experiência de uma provação longa e sofrida suplantou, afinal, o temor da morte.

Aceitar com tranquilidade a parte que me tocava do imponderável me pareceu possível.

Se fosse a hora de partir, tudo bem.

 

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