Ponto de equilíbrio

Maria Avelina Fuhro Gastal

Publicado no livro de contos Nós – editora Metamorfose maio 2018

Estranha e tão perfeita a vida. Tudo aquilo a mim atribuído como escudo, levou-me na direção do que havia de ser evitado. Começou pela ordem do meu nascimento, era eu o terceiro filho, não o primogênito, nem mesmo o segundo. Seguiu-se pelo meu nome. Não me chamo João Alberto, meu nome é João Ricardo. Nunca ninguém havia tido este nome entre nós. Escolhi viver entre os livros e fazer da literatura meu prazer e subsistência. Todos ou outros eram engenheiros, assim, minha escolha me afastava da loucura deles fomentada pelos números e cálculos. Era o que todos acreditavam, inclusive eu. Desconhecíamos que não importava a ordem do nascimento, o nome ou a profissão. Percebo agora, que nem mesmo o gênero importa. O que penso é insignificante. Eles deixaram de acreditar em mim. Fui incluído na longa linhagem de loucos da nossa família.

Eu mesmo me pensaria louco se não estivesse onde estou. Assim eu enxergara meu tio, João Alberto, até aceitar que cabia a mim ocupar o seu lugar. Terei escolhido a loucura?

Fujo da insanidade relatando a vocês o ocorrido.

Há três anos bati à porta de meu tio, já idoso, a pedido da família. Alguém precisava convencê-lo a sair da casa. Sua idade já não permitia que continuasse morando sozinho. Caberia a mim dissuadi-lo de tamanha teimosia. Quando eu era ainda criança, ele teve a mesma tarefa. Deveria convencer o seu tio, João Alberto, sexagenário, a sair da casa. Tentou por anos. Cada vez com mais frequência. Quando o tio faleceu, ele passou a morar na casa. Tinha à época cerca de quarenta anos. Eu fiz quarenta três dias antes de bater à porta daquele que por toda a vida conheci como o irmão louco de meu pai. Ele abriu sem surpresas.

— Sabia que viria. Entra. A casa é sua.

Serviu-me chá, biscoitos recém-saídos do forno, em uma sala arejada, limpa, finamente decorada. Em nada parecia com a casa de um louco. Nem mesmo sua conversa parecia de um louco. Passei horas agradáveis, sem pressa de partir, sem lembrar da minha missão. Elogiei o aspecto de esmero em tudo.

— Sara vem uma vez por semana. Ela sabe como gosto e o que deve observar para não alterar o equilíbrio. Tenho certeza que continuará com você, se assim você o quiser, quando vir para cá.

— Não é minha intenção vir para cá.

— É, só ainda não sabe.
Voltei para a família sem uma solução para o problema. Precisaria de mais tempo e outros encontros para dar cabo do que me fora confiado. Não sei se iludia a eles ou a mim. Voltar era a minha vontade. E passei a frequentar a casa do meu tio.

Quão interessantes eram aqueles encontros. Quanto ele me conhecia e acompanhara minha vida. Quanto ele sabia sobre o mundo e as pessoas. Da regularidade nas visitas passei à constância. Foi quando veio o convite:

— Por que não vem morar comigo? Iria se acostumar com a casa antes da minha partida. E teríamos tempo extra para as conversas, ao invés de ansiarmos por elas na solidão de nossas casas.

Passei a considerar a ideia. Convenci a família que seria uma estratégia para finalizar minha missão. Não sei se acreditaram ou ali perceberam que o próximo louco seria eu. Não se opuseram.

Acomodei-me no andar superior. Meu tio já não conseguia vencer os degraus sem ser tomado pelo cansaço. Nosso ponto de encontro continuou a ser a sala onde me servira o chá. Mantínhamos a privacidade e celebrávamos a convivência. Por um ano desfrutamos de uma harmoniosa relação. Pouco vi minha família nesse período e eles nunca me procuraram.

Em um dia de junho de 1986, percebi em meu tio um tom mais solene.
— Resta-me pouco tempo. Preciso, a partir de hoje, mostrar-lhe sua verdadeira missão. Por acaso não lhe intriga a porta fechada no fim deste corredor, que nunca o convidei a conhecer?

Disse isto já se levantado com esforço. Arrastando os pés percorreu o corredor e abriu a porta.

— Entra. É sua, assim como a casa.

Entrei em uma sala ampla, com uma luz própria, repleta de livros que flutuavam em perfeita harmonia. O único móvel era uma confortável poltrona, ladeada por uma botija transparente com água, tapada por uma pequena caneca com as iniciais JR.

— Bebe. A água é sempre fresca. E é sua.

Meus olhos percorriam o espaço, pulavam de um livro a outro.

— Este é um dos pontos de equilíbrio do mundo.

Minha perplexidade deveria ser visível, pois ele continuou falando sem que eu encontrasse qualquer palavra para articular meus pensamentos.

— Podes ler qualquer livro daqui, podes incluir qualquer livro aqui. Eles encontrarão o seu lugar de repouso. Sua tarefa é uma só: garantir que o ponto de equilíbrio do mundo seja mantido. Se fixar em uma só ideia, enaltecer um só autor, acreditar em uma única verdade, o equilíbrio se desfará. Vozes serão caladas, povos exterminados e ninguém poderá impedir. Ocupe-se do contraditório, questione as certezas incontestáveis. Faça com que elas estejam presentes aqui e que busquem a harmonia entre elas. Não se preocupe com eventuais desalinhos. Mas evite, com ferocidade, a sedimentação de qualquer ideia. Ela está na base do desequilíbrio.

— Só cabe a mim este equilíbrio? — perguntei em pânico.

— Há outros. Sempre houve. Mas trabalhamos sós. Até encontrarmos alguém a quem possamos confiar nosso legado. Não te ocupa a buscar os outros. Não permita que os outros o reconheçam. Nunca sabemos se não estamos à frente de um louco que possa ter prazer em alterar o equilíbrio. A história nos dá pistas de alguns, mas não temos como confirmar.


— E se eu não o fizer? Se eu não quiser?

— Sempre o quisesse. Saberás dosar o tanto de desalinho necessário para a mudança e o tanto de equilíbrio necessário para o avanço. E a você caberá algo que não me coube. Escrever sobre o ponto de equilíbrio. Deixar em testemunho a tua contribuição para a compreensão do mundo.

Meu tio faleceu dormindo três dias após nossa única entrada juntos na biblioteca. Demorei alguns meses para retornar lá. Mesmo assim, ao entrar a água continuava fresca, a luz abundante e os livros suspensos em harmonia.

Hoje decidi começar a contar essa história. Já tenho vinte anos de trabalho para relatar e ainda terei tantos outros pela frente. Por vezes pensei que tudo ruiria. Não tenho dúvidas de que somos muitos. Um só não daria conta de tantas incongruências humanas.

Já nasceu quem me substituirá, mas ainda não está pronta.




 

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