O truque

Maria Avelina Fuhro Gastal

Texto produzido para a oficina do Assis Brasil – PUC/RS, abril 2017, publicado na coletânea Caleidoscópio – 2018

Marina abre o chuveiro. Entra e aos poucos se desfaz das roupas. Baixa os olhos. Vê a água tingida de vermelho escoar pelo ralo. Toda a dor e vergonha esvaindo-se por ele. Esfrega o corpo com força. Levanta a cabeça e deixa a água escorrer pelo rosto. Estranha a falta de lágrimas. Percebe-se sorrindo.

Desliza a toalha na pele. Pega o hidratante e massageia o corpo. Detém-se nas cicatrizes. Nas visíveis e nas da memória.

Pega tudo que precisa para o café da manhã e coloca sobre a mesa da sala. Prepara o lanche da filha e acomoda na mochila. Passa a chave na porta da cozinha.

Entra no quarto da menina, acaricia seu cabelo e se encolhe aos pés de sua cama. Agora tem certeza de que ela não precisará conhecer o truque, pelo menos por enquanto.

Tinha a idade da filha quando o utilizou pela primeira vez. Cinco anos. Também era noite, estava em casa, dormindo em sua cama, quando aquela mão a invadiu. Manteve os olhos cerrados e aprendeu o truque. Fazer de conta que não estava ali. E viveu a infância cerrando os olhos para as mãos que a tocavam e machucavam.

Aos doze anos, viu cruzadas sobre o abdômen do pai as mãos que a feriram. Ali também não chorou. Recebeu os abraços e as condolências daqueles que lamentavam que ela tivesse perdido o pai tão cedo. Ou teria sido tarde demais?

Mas nesta noite, Marina viu nos olhos do namorado, parado na porta do quarto da filha, a ameaça que não soube antecipar em sua vida. Não havia afeto nem zelo. Era um olhar de cobiça, de fome, de caça. No momento oportuno, viria o bote. Não permitiria. Faria o que sua mãe nunca fez.

Afastou o namorado, fechou a porta do quarto e convidou-o para ir à cozinha. Enquanto ele tomava uma cerveja, ela cortava a carne. Manipulava a faca com firmeza. Deitava o fio rente à peça e tirava nacos bem finos, que eram picados com precisão, em pedaços quase idênticos. Os olhos estavam fixados nos movimentos de sua mão que utilizava a faca com destreza. A faca entrava na carne, a despedaçava, retraía-se e voltava com a mesma intensidade. Acelerou os movimentos. Viu sua mão indo e vindo. Viu sua mão virando junto com o seu corpo em direção a Fernando. Viu nos olhos do homem espanto tornar-se pavor. Viu sua mão indo e vindo. De novo e de novo. Cinco vezes, cinco anos.

Largou a faca na bancada, passou a perna sobre o corpo de Fernando, sem olhar, e foi para o banheiro.
********
Deita aos pés da cama da filha e fecha os olhos. Não é o truque. É a certeza de poder dormir sem sobressaltos. Amanhã resolve o resto.

 

voltar para página do autor