Pingos e respingos

Maria Avelina Fuhro Gastal

Texto produzido para a oficina de crônicas com Guto Leite – janeiro 2017

Tão logo larguei o livro e apaguei a luz, escutei os pingos, cadenciados, batendo contra o piso do box. Tentei ignorar, em vão. Acendi a luz, afastei as cobertas, levantei contrariada e usei de toda a minha força para fechar o que ainda pudesse ter sobrado aberto no registro do chuveiro após o meu banho. Retornei para a cama com a certeza de ter resolvido o problema. Apaguei a luz e lá estava ele, de novo. Mudei de posição na esperança de, ao dar as costas para a porta do banheiro, o barulho sumisse. Sem resultados. Mais uma vez levantei, agora irritada, e fiz o que vocês imaginam que eu deveria ter feito desde o início: fechei a porta do banheiro. Deitei, mas não conseguia dormir. Sabia que os pingos continuavam lá, resistentes, explodindo contra o piso. Não importava a força que eu tivesse usado para detê-los, eles esgueiravam-se e ressurgiam, miúdos, contínuos, potentes, devastadores.

O cano estourado exige ação. A água abundante, inesperada, nos coloca em movimento. Fechamos o registro geral, providenciamos o reparo. Às vezes não precisamos quebrar nada, voltamos à rotina e esquecemos do imprevisto. Outras vezes, restam danos aparentes, que ao longo do tempo, de acordo com nossos recursos, vamos restaurando, recolocando tudo no lugar. Se depois do reparo e da restauração restam pingos, eles são capazes de nos derrotar.

Já enfrentei pingos e inundações. Um filme abriu a torneiras destas lembranças.

Manchester à beira mar fala de pingos. Daqueles que gotejam dentro de nós e vão nos inundando até afogar nossa força vital. Na realidade não fala sobre os pingos, mas os mantêm constante pelo olhar, pelo silêncio, pela solidão acompanhada. Um crítico de cinema afirmou que é impossível não sair deprimido. Não concordo. Para mim, é impossível não sair mais sensível.

A diferença entre deprimido e sensível é análoga à inundação e ao pingo. Não suportamos a tristeza do outro, nem a nossa. Mediquemo-nos e festejemos a vida. A sensibilidade resiste ao ufanismo. Ela olha para si e tem olhos para os outros. Suporta a vulnerabilidade, o sofrimento que não é silencioso, pois visível.

Quando os pingos gotejam em nós, ensurdecer é inviável. Num dado momento, o protagonista do filme diz: Não consigo superar. É isto. Não se trata de querer ou de tentar, trata-se de conseguir. Às vezes, é impossível. Aceitar a nossa impossibilidade e a do outro é o desafio nestes tempos de selfies e prazeres embrulhados para presente, prontos para serem desfrutados e descartados.

Naquela noite, por fim, esqueci dos pingos e adormeci. Em muitas outras, respingos da minha história afastaram o sono. Nenhum insuperável, mas resistentes. Não posso ignorá-los ou acabarão me inundando.

 

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