Objeto voador identificado

Maria Avelina Fuhro Gastal

Texto produzido para a oficina do Alcy Cheuiche, publicado na Coletânea Contos Contemporâneos – novembro 2013

Final de tarde de primavera. Luzes vermelhas e brancas giram em ritmo frenético colorindo as árvores. Os pássaros, agitados com tanta luz, revoam emitindo sons de agonia. Um cordão de isolamento afasta os curiosos, mas não impede a visão do ocorrido.

A casa branca de janelas marrons e amplo jardim florido, cenário da fatalidade macabra, mantém-se imponente. Respira ares de modernidade, mas preserva sua elegância secular.

Construída no início do século XX como casa de veraneio da família Mendes Soares, foi herdada pelo único descendente. José Américo, médico renomado, a manteve intacta, apesar da pressão das construtoras que ali só viam um ótimo terreno para especulação imobiliária. Ele via mais. Aquela casa contava sua história, falava dos sonhos de seus avós e pais e da esperança que ele nutria para a vida de seus filhos. Modernizou-a para que além de acolhedora, fosse confortável. Um refúgio de paz entre os edifícios que agora sufocam a rua de sua infância.

Ali construiu uma família com Maria Júlia, companheira de trinta anos. Seus filhos, já crescidos, moram em outros bairros, mas aparecem, às vezes, preocupados com o que vem acontecendo e estranhando a atitude dos pais, que desde aquele evento fatídico nunca mais foram os mesmos.

No carnaval de 2005, José Américo saiu na manhã de sábado para visitar pacientes no hospital e só retornou na quarta-feira de cinzas no final da tarde. A família o procurou exaustivamente e todos já esperavam pelo pior, quando ele entrou pela ampla porta de vidro que separa a sala do alpendre. Vestia uma calça branca, camisa vermelha e alpargatas. Entrou sorrindo, dizendo que tivera uma experiência que lhe mostrara um novo significado para a vida. Fora abduzido, junto com Célia, a enfermeira do sexto andar norte. Ao longo dos últimos cinco dias foram mantidos em um local amplo, iluminado com uma luz branca que banhava seus corpos nus, ao som de uma melodia suave que silenciava seus pensamentos. Não conseguiam definir se estavam acordados ou sonhando. Foram libertados naquela manhã, dentro de seu carro, que estava estacionado em um hotelzinho em Torres. Não pensou que pudessem estar tão aflitos, pois para ele o tempo não havia existido.

Maria Júlia não conseguiu acreditar na história do marido, que tentava lhe acariciar os cabelos, falando que ela precisava experimentar algo tão intenso para se sentir mais confiante e serena.

Desde lá, José Américo diminuiu sua carga de trabalho e toda quinta-feira vai para local incerto e não sabido para meditar e se preparar para um contato imediato de terceiro grau. Em casa, construiu uma pirâmide de vidro no pátio, instalou som ambiente, e quando volta do hospital, de segunda à quarta, recolhe-se ali, deitado com a cabeça virada para o leste. Maria Júlia, da janela do quarto do casal, consegue ver o marido de olhos fechados, sorrindo.

Enquanto José Américo parecia mais leve e feliz, Maria Júlia estava cada vez mais ansiosa e retraída. Evitava os vizinhos e amigos, pois não queria repetir para eles aquela história absurda, nem justificar as ausências do marido. Sentia-se cada vez mais incomodada com as atenções que ele lhe dispensava nos poucos momentos que conviviam. Descobriu que Célia, a enfermeira abduzida, tinha pedido demissão e ninguém sabia dela. Corria a boca pequena pelos corredores do hospital que ela havia cometido a loucura de se demitir logo após às faltas não-justificadas no carnaval de 2005, quando retornou bronzeada e com um sorriso enigmático nos lábios.

Naquele final de tarde, um objeto pesado e contundente caíra da janela do quarto do casal, estilhaçando o vidro da pirâmide, afundando o osso parietal do crânio de José Américo. Maria Júlia ligou para a polícia e para o SAMU pedindo ajuda. Nega saber o que aconteceu. Afirma que naquela tarde, finalmente experimentou todas as sensações que o marido descrevia há tanto tempo. Havia sido abduzida, junto com o vizinho do 403-C do prédio ao lado, e que ao retornar para casa encontrou a porta aberta, o portão destrancado e seu quarto revirado. Só viu o marido ferido quando foi à pirâmide para contar a ele que agora poderiam viver em paz, pois compreendia o quão inesquecível e envolvente é a experiência da abdução.

José Américo não resistiu aos ferimentos. Apesar da tragédia, Maria Júlia não deixa de pensar na ironia, pois ele fora morto por um objeto voador, no caso, identificado.

 

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