Quem quer saber (de) ciência

Stela Rates

QUEM QUER SABER (DE) CIÊNCIA?

“Eu vivo pensando: talvez, se eu entendesse um pouco de ciência, a história da minha mãe e da minha irmã não me assustasse tanto”. Essa é uma afirmação de Deborah Lacks, transcrita do livro “A vida imortal de Henrietta Lacks”, de Rebecca Skloot, versão em português publicada em 2011, pela Companhia das Letras. Deborah falava de seu sofrimento por não compreender o significado da vida de sua mãe, Henrietta, para a ciência e a doença de sua irmã, Elsie. Henrietta Lacks foi uma mulher negra e pobre, do Sul dos Estados Unidos, vitimada por um violento câncer de colo de útero, do qual foram extraídas células mantidas em cultura para o estudo da biologia do câncer e de outros fenômenos celulares. São as células HeLa, fundamentais para o desenvolvimento da vacina contra a poliomielite, entre outros avanços na área biomédica. A contribuição das células HeLa para a ciência, bem como os desdobramentos bioéticos da história de Henrietta e de sua família, são imensuráveis. Sua filha Elsie foi, ainda criança, internada no Centro Hospitalar Crownsville (Hospital para Negros Insanos) e lá morreu, com diagnóstico de idiotice. Na verdade, possivelmente era portadora de epilepsia e sequelas neurológicas de uma sífilis congênita. Existem suspeitas de que tenha sido utilizada em experimentação humana. Todos esses acontecimentos se deram sem o conhecimento da família Lacks, entre 1950 e 1960, uma época em que e a regulamentação das pesquisas envolvendo seres humanos emergia de horizontes nebulosos e a Bioética não era ainda uma ciência estabelecida. Quase 50 anos depois, Deborah Lacks julgava que entender melhor a ciência poderia tê-la ajudado a sofrer menos. E eu me pergunto: o que seria “entender a ciência”? Como alcançar esse “entendimento”?
Meu lastro teórico para essa discussão é bastante limitado. Assim, o que apresentarei aqui são breves relatos, acompanhados de alguma reflexão livre. Expressarei sobretudo dificuldades. Dificuldades que pessoas como eu, pesquisadores de bancada, possuem para apresentar os resultados e implicações do seu trabalho aos cidadãos não envolvidos com o fazer científico ou, ainda, envolvidos com outros domínios do fazer científico. Dificuldades para compreender e se fazer entender. Dificuldades para dialogar, romper barreiras culturais (sim, porque entendo a ciência também como uma cultura). Nesse sentido, talvez seja mister apresentar minhas credenciais científicas básicas, que darão notícia das minhas deficiências filosóficas e do meu domínio circunscrito de conhecimento: farmacêutica, farmacologista experimental, pesquisadora na área de desenvolvimento de fármacos, há quase 30 anos.
Ao longo de minha carreira, tenho participado de inúmeras entrevistas e debates, proferido palestras e publicado textos na imprensa leiga, supostamente destinados a esclarecer a população sobre evidências científicas nos meus domínios de atuação. Registro e qualifico este tipo de atividade como “de educação e popularização em ciência e tecnologia” no meu currículo na Plataforma Lattes do CNPq e nos Relatórios de Atividades dos Programas de Pós-Graduação aos quais estou ligada. São atividades que aos poucos vem sendo reconhecidas também como atividade fim do pesquisador. Contudo, na maioria das vezes, sinto que meu discurso de pesquisadora não se acomoda no tempo, no espaço e na linguagem da mídia, e que, talvez, também não se alinhe à perspectiva do expectador/ouvinte/leitor. Ao fim e ao cabo, me parece não se estabelecer uma interlocução real.
Segundo o CNPq, a atividade de divulgação científica é uma atividade complexa em que os conhecimentos científicos e tecnológicos são colocados ao alcance da população para que esta possa utilizá-los nas suas atividades cotidianas e tomadas de decisão. No Portal do CNPq, há uma aba denominada “Popularização da Ciência” que lista os seguintes meios e instrumentos de divulgação científica: congressos, seminários, colóquios, palestras, conferências, publicações variadas (livros, revistas, jornais, folhetos), museus com exposições abertas ao público, jardins botânicos, planetários, filmes, vídeos, programas de rádio e TV, internet, centros de ciência, e parques temáticos, incluindo escolas, faculdades e universidades. Mas, qual a efetividade de tudo isso em alcançar as Deborahs Lacks de nosso país? Não se tem medida.
Não me refiro apenas à dificuldade de acesso de grande parte da população à educação formal de qualidade, aos serviços de saúde e aos bens de consumo. Me refiro também a algo um pouco mais difuso e difícil de quantificar: a descrença, a negação da ciência enquanto um bem humano! A reportagem de capa da mais recente edição da revista National Geographic intitula-se Guerra a Ciência e relata, por exemplo, que um terço dos norte-americanos acredita que os serem humanos existem desde o princípio do mundo e que o movimento antivacinação se alastra nos Estados Unidos. E estes fenômenos não parecem estar diretamente relacionados a baixos níveis educacionais ou socioeconômicos.
Em 2013, quando ativistas pró-direitos dos animais invadiram o Instituto Royal, em São Paulo, e de lá retiraram cães utilizados em pesquisas de novos medicamentos, tive a oportunidade (por conta de minha atuação como Coordenadora da Comissão de Ética no Uso de Animais da UFRGS) de conversar longamente com vários profissionais não atuantes em ciência, entre eles jornalistas e políticos, sobre o tema, e fiquei impressionada com a ignorância e o preconceito científicos que testemunhei. Na verdade, não foi uma experiência nova, apenas mais contundente, pelo clima apaixonado que a cercou. Tive essa mesma impressão inúmeras outras vezes, em instâncias profissionais e também na esfera das relações pessoais, ao discutir temas de meu domínio, como as potencialidades e limitações da utilização de plantas como recursos terapêuticos, a gênese e o tratamento farmacológico das doenças mentais. A maioria das pessoas leigas simplesmente desconhece como funciona a ciência e os preceitos éticos e legais que normatizam e regulam o fazer científico. Mas, mesmo assim emite opiniões incisivas sobre o que considera certo ou errado em ciência e o que supõe constituir a práxis e a motivação dos cientistas.
Também entre cientistas o diálogo não é fluido, quando entram em cena diferentes esferas da ciência. O fazer científico não é uno. Um cientista social pode se comportar como um leigo cético diante de um cientista exato e vice-versa. São os guetos científicos, por assim dizer. A perspectiva e os parâmetros de valoração de quem trabalha com ciências humanas são diferentes daqueles que trabalham com ciências exatas ou biológicas, por exemplo, ainda que também seja intrínseca uma convergência: a necessidade de interpretação da realidade, a busca de elementos para decidir no que acreditar ou deixar de acreditar e em que se basear para tomar decisões.
À procura de conforto intelectual, poderíamos supor que se trata apenas de uma necessidade de harmonização entre diferentes linguagens. E muitas vezes trabalhamos a decodificação da linguagem de um determinado domínio científico para uma linguagem compreensível ao leigo naquele domínio científico ou em ciência em geral, como se fosse esse o único obstáculo a ser transposto para a divulgação científica e popularização da ciência. Mas, é bem mais do que isso. Ou, então, acreditamos que a
popularização da ciência se dará sobretudo pela expansão das possibilidades de inclusão de setores historicamente desfavorecidos da população ao mundo do fazer científico. Por certo que é uma meta a ser perseguida com determinação, mas penso que as raízes do problema são também metafísicas e políticas, no mais amplo sentido que essas palavras possam ter.
O método científico não é algo natural para a maioria das pessoas. Ele conduz a verdades pouco evidentes, que muitas vezes contrariam o senso comum, construído pelo que os sentidos humanos permitem registrar. O método científico busca rejeitar hipóteses, enquanto o ser-humano almeja a confirmação de suas certezas préconcebidas. A ciência não nos garante verdades confortáveis e eternas. A ciência traz conhecimento, mas nem sempre traz alívio. A ciência por vezes desampara e, ao mesmo tempo, é um instrumento de poder. Poder historicamente destinado a poucos. Então, arrisco dizer que a negação das evidências científicas pode ser também a expressão de uma sinuosa busca de segurança, autonomia e empoderamento. É um paradoxo, pois me parece que a verdadeira autonomia, e todas as suas consequências libertadoras, residem justamente na apropriação da ciência por parte do indivíduo. E não vejo forma mais eficiente, nem mais urgente, de alcançar isso do que a internalização da ciência e do método científico nas crianças em idade escolar.
Muito mais do que conhecer dados e teorias científicas, o indivíduo precisa viver o alumbramento da descoberta e, ao mesmo tempo, entender que a descoberta não é é fruto da iluminação de uns poucos escolhidos; é fruto de trabalho coletivo, do exercício constante de um método que todos podem aprender. No processo de divulgação, popularização e democratização da ciência, é imperativo desmistificar o cientista, que precisa ser visto apenas como uma pessoa que teve um treinamento específico, passível de erro e sujeito a pressões, como tantos outros profissionais. Roberto Lent, neurocientista e um dos fundadores das Revistas Ciência Hoje e Ciência Hoje das Crianças, diz que o mito do cientista genial afasta as pessoas, as faz pensar que ciência não é para elas ou para suas famílias, porque não são geniais. É a porta aberta para o obscurantismo, o assombro dolorido de Deborah Lacks!

Texto originalmente publicado no Jornal da UFRGS: Jornal da Universidade, Porto Alegre, p. 04, 06 maio 2015.

 

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