Restauração

Miguel da Costa Franco

Quando despertei, estava meio enjoado. Senti-me oprimido, como se estivesse enfiado numa tumba. Aos poucos, lembrei da truculência de nossos captores e das garras fortes que me haviam sujeitado; da agulhada no pescoço e das presilhas apertadas com que manearam minhas mãos e pés; dos gritos desesperados de Vítor, chamando por mim.

Tentei mover-me, mas continuava com braços e pernas amarrados. Chamei por meu filho. Meu brado ribombou, soturno, nas paredes da minha cápsula, fazendo um eco metálico, Vítor, Vítor, Vítor...

Não tive respostas.

Havia um cheiro de desinfetante no ar, passos descansados e murmúrios incompreensíveis no meu entorno. Ao fundo, soava uma música de ritmo lento e toques sutis.

De repente, vi-me envolto numa tempestade de areião sob um telhado de zinco. Nada concreto me atingia, mas o barulho era ensurdecedor.

- Vítor! – insisti.

Ninguém respondeu.

Aquela chuva de granizo sobre teto de latas, a um palmo de distância do meu rosto e dos meus ouvidos, continuou por longos minutos, até sobressair do tumulto um silvo estridente e o som de tampas que se abrem.

Depois, um silêncio absoluto. Implacável.

Senti que a maca em que se apoiava o meu corpo passou a mover-se lentamente, zumbindo como abelhas. Um sopro gelado atingiu meus pés, subiu devagar pelas minhas canelas desnudas, pelas coxas, pelo ventre exposto e pelo torso, até chegar à cabeça.

Outros chiados similares, soando do meu lado esquerdo, acompanharam o deslizar da maca para a zona fria.

Senti que estava agora em espaço aberto. Tinham me retirado do que eu imaginara ser um tubo.

- Me cubram aqui - protestou uma voz feminina.

O eco daquele protesto mostrou-me ser amplo o vão do ambiente. Alguém se movimentava ao fundo da peça, mas não parecia dar atenção à queixa da outra.

- Pra quê essa tomografia? – a mulher insistiu.

- Sou médico, posso assegurar que isso não foi uma tomografia – respondeu o homem deitado próximo a mim.

- O que foi isso, então? – ela perguntou.

- Vítor! – chamei – Alguém está vendo um menino por aí?

- Não há meninos aqui – disse o médico.

- Vítor! – gritei mais forte.

- Tem outros iguais a nós lá fora – disse a mulher. – Do outro lado do vidro. Vestindo camisolões.

- Como assim iguais? – eu perguntei.

- Quase iguais – disse o médico. - A mão do meu outro eu não treme como a minha.

- Eu estou de pé, não estou usando a cadeira de rodas – disse a mulher.

- Também tô lá? – eu quis saber.

- Olha pra tudo com muito interesse, não parece cego como o senhor – disse o médico.

- Tem algum menino?

- Não. Tem certeza que o trouxeram pra cá?

- Não sei - respondi.

- Ele tinha alguma doença? – perguntou o médico.

- Ele tem. É epilético – eu disse.

Alguém se aproximou e enfiou um bocado de gaze na minha boca. A mulher gritou de novo:

- E o meu lençol?

O médico, em seguida, passou a rugir abafado como eu. A mulher fez seu último protesto – pra quê, isso? - e percebi quando lhe enfiaram um chumaço de gaze boca adentro.

As macas começaram a mover-se. Ouvi pancadas insistentes sobre superfícies de vidro. Talvez fossem os outros de nós dando sinal de vida ou protestando no lado externo do salão.

Percorremos um longo trajeto, em comboio, a mulher urrando forte na frente, insatisfeita, depois o médico e eu. Nossos condutores mantiveram-se em silêncio. Cheiravam a éter e borracharia.

Alto-falantes soaram numa linguagem incompreensível. Fizemos uma curva e as macas se entrechocaram, uma vez ou outra – retinindo metais -, até serem posicionadas lado a lado, com as rodas acomodadas em encaixes no piso.

Mais instruções estranhas vieram do sistema de som.

Os maqueiros saíram da sala e a porta bateu. Fecharam-se trancas.

Sofri um arrepio profundo. Cada um ao seu modo - o médico, a mulher e eu -, começamos a rugir.

Na sequência, ouvimos três alertas sonoros, agudos e breves. Um perfume passou a dominar, pouco a pouco, o ambiente. Silenciamos. Tinha algo de lavanda no ar, mas era mais abrasivo. Minhas narinas arderam. Tentei, mais uma vez, me libertar. Parecia gás.

 

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