Tiros no Bonfim

Miguel da Costa Franco

O semáforo da Avenida Osvaldo Aranha fechou. Os carros bloqueados foram compondo, como de costume, duas longas filas pela Rua Fernandes Vieira. No pelotão da frente, uma Kombi azul e um Fiat Uno; depois, um furgão de entregas de uma lavanderia e um Honda Civic branco; na terceira posição, um táxi e a Tucson prata. Atrás dela, um velho Chevette preto e uma carroça cheia de entulhos. Mais adiante, outros automóveis foram se achegando, pouco a pouco. Motoboys enfiaram-se entre eles.

Uma viatura da Brigada Militar, indo em direção ao centro pela mão direita da avenida, aportou ao cruzamento e freou de chofre, somando-se ao sinal vermelho para impedir o avanço de quem vinha da Independência. Soldados desceram da camioneta atravessada na esquina, armas em punho, escondendo-se entre os carros estacionados.

Os rapazes desmazelados, que desciam a rua correndo, viram-se forçados a recuar. Espalharam-se como ratos assustados entre os veículos inermes, protegendo-se dos policiais. Então se ouviram os primeiros tiros.

Motoristas e passageiros, represados pela sinaleira e pelo camburão, abaixaram-se acuados. Soaram buzinas nervosas. Pedestres protegeram-se dentro das lojas abertas, espremeram-se atrás dos postes ou ocultaram-se ao lado de automóveis estacionados. Uma velhota, talvez já meio surda, não entendeu a aflição de seu cachorrinho, pegou-o no colo e seguiu trotando rumo ao parque, indiferente às balas que continuavam a zunir.

Dois policiais, em motocicleta, desceram velozes pelas calçadas, cercando por trás os fugitivos. Um deles, à direita dos carros enfileirados, afrontou o brigadiano recém-chegado, dirigindo-lhe um ou dois tiros. O soldado esquivou-se com desenvoltura, freou de lado, fazendo deitar-se a motocicleta. Do chão, sacou o revólver e desferiu um balaço certeiro na perna do agressor, que caiu aos gritos.

Outros tiros foram ouvidos em sequência, vindos de um lado e de outro. Dos demais rapazes, um ergueu as mãos pedindo clemência e se entregou ao brigadiano mais próximo. O outro subiu a rua ziguezagueando entre os carros, perseguido, desde a calçada, pelo segundo motociclista.

As buzinas insistiam em espalhar mais e mais nervosismo. O carroceiro esforçava-se, sem muito sucesso, em manter o controle de seu cavalo assustado.

Todas as atenções nas proximidades da esquina se voltaram para o homem baleado. O oficial em comando, babando adrenalina, aproximou-se dele e desferiu-lhe sucessivos chutes na perna ferida. De alguma loja, alguém gritou “pra quê isso?”

Um subordinado adiantou-se e conteve o chefe agressivo. Depois, dedicou-se a algemar o jovem caído, enquanto outro colega seu tratava de catar a arma que se havia extraviado pela sarjeta.

Os presos foram carregados para o camburão que aferrolhava a boca da rua. Numa manobra rápida, a camionete virou a sua esquerda e tomou o rumo do Pronto Socorro, seu destino provável, as sirenes gritando, alucinadas.

Os motoristas, retidos em suas celas sobre rodas, demonstravam ansiedade, acelerando os motores e fazendo ribombar as buzinas entre a fileira de edifícios baixos.

Pessoas foram surgindo pelas portas do comércio local. Grupos se formaram nas calçadas, conversando sobre o ocorrido, sobre a insegurança intolerável em que vivemos.

A senhora do cachorrinho perguntava ao pipoqueiro da esquina o que havia acontecido.

O sinal abriu.

O som das buzinas, mais e mais desesperadas, espalhava-se ao longo da rua.

Assim que pôde, o Fiat saiu zarpando, logo atrás das motos, mas a Kombi, também em primeiro na fila, não se moveu. Custou a pegar. As buzinas altearam-se. Logo se ouviu o ruído acelerado do motor, e ela arrancou deixando no ar rolos de fumaça preta. Avançaram em sequência o furgão da lavanderia e o Honda Civic. Também o táxi moveu-se apressado e parou no outro lado da avenida para receber um passageiro. O cavalo animou o trote, meio descontrolado, levando consigo o carroceiro e seus trastes.

A vida retomava seu curso normal.

O motorista do Chevette preto, assim que pôde, contornou a Tucson parada, gritando obscenidades. O duplo fluxo de veículos afunilava-se em um, alternando-se pelo lado esquerdo da camionete.

Aos poucos, todos começaram a achar estranho que a Tucson prata não avançava. Permanecia parada à direita da rua, sem ânimo de movimentar-se. Sua buzina seguia soando e soando e soando, sem intervalos.

Quem se aproximou dela, percebeu um pequeno furo, com estrias concêntricas, na parte superior da janela lateral. Semi-oculto pelos vidros fumê, emborcado sobre o volante, o motorista seguiu pressionando com o seu corpo pesado aquela buzina angustiante até a chegada tardia da perícia técnica.

“Tiroteio complica o trânsito no Bonfim” seria a manchete do jornal da noite.

 

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