Ezequiel Berriel
— Já viu que às vezes o mundo é cruel com as pessoas, Emílio?
— Como assim cruel, Ricardo?
— Sabe aquele mendigo que aos domingos fica lá na escadinha da igreja, pedindo?
— Sim, é o Euzébio. O que tem?
— Conhece bem ele?
— Não. Dizem que veio lá dos lado do Uruguai. Não sei bem. Ele não fala muito com as pessoas.
— Pois é. Mas ele não é o que parece. Não veio dos lado do Uruguai e não é Euzébio.
— Como assim?
— Não é bem que não seja o que parece. É que tem história, sabe? Conheci alguém que me contou umas coisas dele.
— Mas então fala. Todo mundo gosta do Euzébio, parece.
— Sim, Emílio, isso eu sei. A gente tudo gosta dele. Mas diz que é coisa braba o que ele fez.
— Será que é por isso que ele quase não fala com ninguém?
— Pode ser. Se não me engano, até hoje só vi o padre falando com ele.
— Tá! Mas e daí?
— Mas e daí? Tu sabe onde ele mora? Conhece algum parente dele?
— Putz, cara! Sabe que nunca pensei nisso, mesmo? Só vejo ele lá.
— Tu não sabe de nada. E é bom eu não ficar falando disso. Nosso dia hoje foi pesado e trabalhoso. Vamos lá no bar do Chico tomar uma gelada?
— Mas o Euzébio, cara? Vai contar ou não?
— Vamos ou não vamos no Chico? — insiste Ricardo.
— É, vamos. Já aproveito e pago a cerveja por conta do meu aniversário.
— Bah, Emílio! Me desculpa. Nem lembrava mais. Quantos anos?
— Trinta e cinco.
— Trinta e cinco! Vamos lá comemorar.
— Tá bom! Mas me conta esse assunto do Euzébio.
— Isso não é certo. Me pediram segredo.
— Mas tu falou que sabe coisas.
— Não é bem que eu saiba coisas. Me contaram.
— Tá! Mas já que te contaram, pode contar pra mim agora?
— Olha só, Emílio, tu acha que ele teve uma família algum dia? Uma mulher? Um filho ou uma filha? Será que teve? Me diz.
— Eu não acho nada, tu que sabe das coisas, então me fala logo. Esse negócio de ter ou não ter família, pai e mãe não me diz nada. Eu, pelo menos, tirando a tia Clara, nunca tive isso.
— Pois é, Emílio. Tu nunca me contou direito essa tua história. Onde tá tua família?
— Pô, Ricardo! Isso agora? Todo mundo aqui sabe. Um acidente matou todos e eu fui salvo por um acaso. Dizem que foi sorte, sei lá. Mas vá, a tia Clara me criou e quando morreu me deixou muito bem. Isso não interessa agora. Conta a história do Euzébio.
— Tá bom. Esse assunto é meio que medonho, vou falar e vai morrer aqui. Depois, não falei nada.
— Pô, cara! Desembucha logo.
— Bom, Emílio, que seja. Vai lá o causo: me disse a pessoa que contou essas coisas, e pediu segredo, que o Euzébio tinha outro nome e era muito rico. Muito rico mesmo. Ele tinha uma mulher muito bonita e um filho recém-nascido.
— E aí? Isso não é normal, cara?
— Normal nada! Um dia, ao chegar em casa, voltando de viagem, já de madrugada, diz que o Euzébio encontrou o irmão fazendo coisinha com sua mulher.
— Minha nossa! E aí?
— Minha nossa mesmo. Caiu a casa.
— Tadinho do Euzébio.
— Tadinho nada! A primeira coisa que fez, dizem, foi degolar o irmão ali mesmo. Depois diz que fez a mesma coisa com a mulher. O filho dormia no berço no quarto.
— E depois, Ricardo?
— Pois é. Dizem que Euzébio trancou portas e janelas e botou fogo na casa. Pra morrer junto.
— Vão beber o quê? — interrompeu o Chico do bar, passando um pano úmido na mesa.
— Uma cerveja, Chico! E não vai trazer quente. Traz uns pastel junto — ordenou Emílio ansioso para continuar ouvindo a história de Ricardo.
— Pastel de quê?
— Traz uns de carne e uns de queijo, Chico. Mas feito na hora.
— Vai, Ricardo, continua aí a lambança do Euzébio.
— Pois é. Dizem que quando começou o incêndio o padre Eurico, que morava no lado, acudiu.
— E aí? Ele salvou o Euzébio?
— Sim! Derrubou a porta, entrou na casa e retirou lá de dentro o Euzébio e o bebê.
— E daí, Ricardo?
— E daí que antes de chegar alguém o padre levou o Euzébio e o bebê para a casa paroquial. Euzébio estava fora de si, em estado de choque. Não falava nada, totalmente paralisado e sem qualquer reação. O bebê, com alguns meses de vida, dormia enrolado em um cobertor.
— Meu Deus do céu! E aí?
— Quando chegou o socorro o fogo já tinha destruído tudo e se espalhou a notícia de que toda a família havia morrido queimada. O padre Eurico não contou a ninguém que havia salvado o Euzébio e o bebê.
— Mas, Ricardo, como que essa história não é conhecida até hoje? Nunca ninguém falou disso.
— Pois o padre Eurico era o confessor da mulher do Euzébio. Ele sabia das coisas.
— E aí?
— E aí que o padre resolveu não contar nada do ocorrido. O Euzébio seria considerado um criminoso, o bebê teria sua vida marcada pela tragédia. O Euzébio, louco e sem memória, foi escondido e mantido em um quarto no porão da Igreja e o bebê foi dado para uma paroquiana solteirona e de confiança do padre para criar. Todo mundo acreditou que o incêndio matou toda a família e o fato foi caindo no esquecimento.
— Mas e o Euzébio, Ricardo? Sempre aos domingos lá na escadinha da Igreja. As pessoas não conheciam ele? Não sabiam nada?
— Pois aí que é, Emílio! Diz que o Euzébio só apareceu lá na frente da Igreja muitos anos depois daquele horror. Com o cabelo e a barba embranquecida e comprida, magricelo e maltrapilho, com o novo nome dado pelo padre Eurico, ninguém o reconheceu. E mais, diz que ele nunca lembrou de nada e não sabe até hoje quem era e o que fez. Quando o padre Eurico morreu veio o padre Luiz, que sem saber da história mandou o Euzébio embora da Igreja.
— Mas pra onde ele foi?
— Morar na rua. Dizem que dorme na beira do rio, num barraco embaixo da ponte. E sempre aos domingos pede esmola na escadinha da Igreja na saída da missa. Tem muita gente que ajuda com comida, roupa e calçado.
— Sabe, Ricardo? A tia Clara contou que eu fui salvo de um acidente em que meu pai e minha mãe morreram. Ela nunca me explicou muito esse acidente. Tu sabe alguma coisa?
— Não sei nada. Tu já falou sobre isso. Inclusive tu disse que ficou bem de vida.
— Pois é. Fiquei bem. Mas e essa tragédia do Euzébio? Quando foi que aconteceu?
— Olha, Emílio, pelo que fiquei sabendo já se vão mais de trinta anos.
— Quanto mesmo?
— Sei lá! Uns trinta e tantos, acho.
— Mas então? Que idade tinha o filho do Euzébio no dia do incêndio?
— Pô, Emílio! Já te disse antes! Ele tinha meses de idade. Tipo assim recém-nascido, sabe?
— E a tia Clara? Sabe alguma coisa dela?
— Não. Só sei que ela era como se fosse tua mãe. Mas nunca soube de outros parentes dela.
— É, ela nunca me falou de nada. Sabe, tem uma fotografia lá em casa, de um casal jovem e muito bonito. Sempre que eu perguntava quem era aqueles dois a tia Clara dizia que a mulher era uma irmã muito querida e já falecida. Quanto ao homem, desconversava dizendo que era ninguém.
— Que história essa tua, Emílio!
— Pois é, Ricardo! Me diz: tu já viu alguma vez o Euzébio limpo, sem barba, com o cabelo cortado e arrumado? Viu?
— Que eu saiba, a não ser o falecido padre Eurico, ninguém nunca viu. Mas Emílio? O que tem isso agora?
— Nada, Ricardo. Me desculpa. Paga a conta do Chico e depois a gente acerta. Preciso ir. Até mais.
— Emílio! O que esta havendo? Espera!
— Depois a gente fala — gritou Emílio, caminhando em direção ao rio.