O novelo

Maurício Schames

Ele era mordido pela calçada quando o recolhi da rua. Debateu-se estupidamente contra meu abraço, pouco antes de desmaiar.

Levei-o para casa e dei-lhe conforto, leite e alguns cobertores. E também um nome, que demorou a atender. Vacinei-o em função das mordidas e pulgas. Deixei-o à vontade com sua própria higiene.

Às vezes, no meio da noite, acordei assustada com algum ruído. Então o percebia na outra extremidade do quarto, me fitando com aqueles olhos verdes e medonhos.

Semanas depois estabelecemos alguma confiança. Aproximava-se e ronronava, enquanto deixava-me brevemente acariciar seu volumoso cabelo negro. Aprendeu desajeitadamente a retribuir os mimos.

Passamos a dormir juntos e me impressionou a velocidade com que nos adaptamos. Encontramos o amor diversas vezes naquela cama estreita. Tinha satisfação em vesti-lo para, minutos depois, arrancar suas roupinhas. Era o meu prazer de estimação. Senti-me lisonjeada quando disse meu nome, sua primeira palavra. Rimos bastante ao longo dos diálogos e me encantei com seu humor. Divertia-o com as mais diversas leituras e aperfeiçoei seu gosto pela pintura e a música clássica.

Porém o que mais lembro foi quando tirou a maquiagem e colocou a cabeça em meu colo para esconder o choro. Confessou tudo e me fez ciente de como chegara ao estado de quando o conheci. Vi o poder de nossa cumplicidade quando peguei suas mãos e revelei minhas cicatrizes. Roçou a pele na minha. Jamais poderia deixá-lo.

O primeiro sumiço foi didático e durou duas noites. Quando pedi por explicações mostrou-me suas garras e aboliu as palavras, desnecessárias para a compreensão de quem era o dominante. Consumiu as chaves do apartamento e do carro. Aprisionou-me em meu lar e naquele joguinho. Bebia meu leite, trazia-me ratazanas.

Regressava de festas, lanhado. Entrava pela janela, trocando meu nome e com relatos absurdos. Exibia as feridas para que eu lambesse. Às vezes reaparecia com companheiras no cio. Cruzavam na cama, entusiasmados com a minha presença. Aquilo frequentemente se repetia, embora a contagem de dias para seu retorno fosse imprecisa. Por falar em ciclo, não foram poucos os palpites que me alertaram. Fugiu antes de me ouvir dizer que estava prenha.

Nutri quatro bocas que me mastigavam e a esperança de revê-lo. Eu sabia que não poderia buscar consolo com ninguém, todos me odiavam por ainda amá-lo. Reapareceu quase na hora do parto, depois de uma gestação complicada. Pela primeira vez, entrou pela porta. Aquilo tudo não lhe era nem um pouco novo, mas tinha certa curiosidade de ver com quem os rostinhos se pareceriam. Meu caso não era simples, as contrações estavam cada vez mais agressivas. Minha maior preocupação era a certeza de que meu fim significaria o extermínio da nossa prole. Implorei por ajuda.

“Acalme-se, sempre são sete vidas”, respondeu-me, enquanto brincava com uma bola de lã entre os dedos.

 

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